Críticas à Arbitragem: como usar

Autor: André de Albuquerque Cavalcanti Abbud

Nos anos 80, estudo da Universidade de Stanford mostrou que, após serem chamados a assistir às mesmas reportagens televisivas sobre o massacre de Sabra e Chatila em Beirute, tanto um grupo pró-Israel quanto um grupo pró-árabe concluíram que a cobertura fora enviesada para o lado contrário. Os pesquisadores observaram que os partidários dos dois grupos avaliaram a justiça dos fatos e argumentos usados nas reportagens de acordo com suas próprias visões divergentes sobre o mérito de cada causa e o que seria uma cobertura imparcial.

Mas o que isso tem a ver com arbitragem? Será que mecanismo semelhante pode influenciar a opinião dos usuários sobre a qualidade da arbitragem e de seus resultados? Se for esse o caso, deveríamos sempre levar em conta tais vieses ao usar as críticas feitas à arbitragem como fonte de ideias para aperfeiçoá-la, sob pena de cometermos erros graves.

Muitos estudos empíricos feitos ao longo de décadas apontam para um fenômeno conhecido como polarização de grupo: os membros de um grupo tendem a assumir, após debates internos, uma posição mais extrema que a adotada por seu integrante médio antes da deliberação começar. Existem várias hipóteses e razões para isso, mas vale comentar algumas delas:

  1. Informação. O conjunto de informações e argumentos usados em qualquer grupo com uma certa predisposição em determinada direção é naturalmente enviesado nessa mesma direção. Isso significa que, com o avanço dos debates, cada membro do grupo adquire dos colegas mais argumentos e informações que suportam aquela visão a que predispostos originalmente, o que tende a aprofundar sua posição. Some-se a isso que as pessoas tendem a lidar com a informação limitada a que têm acesso como se fosse tudo o que há para saber a respeito (a chamada regra WYSIATI – what you see is all there is).
  2. Confiança. Pessoas com visões mais extremas tendem a ser mais confiantes e, à medida em que as pessoas ganham confiança, suas visões passam a ser mais extremas. Assim, conforme os integrantes de um grupo percebem que outros compartilham sua visão, eles tendem a se tornar mais confiantes de que estão corretos e, por consequência, a assumir opiniões menos parcimoniosas.
  3. Comparação e aceitação social. A maior parte das pessoas quer ser percebida favoravelmente pelos membros de seu grupo. Desse modo, é comum que suas visões sejam uma função do modo como querem se apresentar aos outros. Ao conhecer a opinião dos demais, alguns tendem a ajustar sua própria visão na direção dominante, como forma de obter maior respaldo dentro do grupo. Em paralelo, podem diminuir a importância ou deixar de compartilhar informações e argumentos contrários, se antecipam que isso os fará serem percebidos menos positivamente pelos outros integrantes. Em ambientes mais agressivos, em que a cautela pode ser percebida como uma fraqueza, ela tenderá a ser substituída por posições mais agressivas, que acabam levando o grupo a visões mais extremas.

Não parece haver razão para achar que o comportamento dos grupos envolvidos na condução de arbitragens seja imune a esse tipo de viés. Se, por exemplo, a cultura subjacente à relação cliente-advogado valoriza excessivamente este último como promotor de conflito e maximizador do interesse individual, há forte incentivo para que o advogado maximize (exagere) os fatos e argumentos em favor de seu cliente. E ambos tendem a acabar acreditando naquilo que inicialmente poderia parecer um exagero, tanto porque essa era sua predisposição original, quanto porque essa visão lhes convêm. Como diz a piada: “Você se machucou muito?” “Não sei dizer enquanto não falar com meu advogado”. As pessoas estão sempre prontas a buscar e absorver informações que suportam as crenças que já têm; menos prontas a enxergar as informações que as contrariam (viés de confirmação).

Se isso é verdade, é de se esperar que, ao longo da duração da arbitragem, as sucessivas tratativas do time composto por advogados externos, membros do jurídico da empresa, administradores e técnicos tendam a engrossar cada vez mais as razões favoráveis a seu lado da disputa e a torná-los mais confiantes na força de sua tese (se as provas produzidas no processo não a desmentirem com muita clareza). E que o mesmo tenda a acontecer com o grupo do outro lado da disputa. O espaço para esse processo de polarização ocorrer aumenta à medida em que é maior a complexidade fática e jurídica dos casos, nos quais a “decisão correta” está longe de ser óbvia. Assim, por exemplo, o que no início da arbitragem parecia dentro do grupo uma tese muito difícil de ser sustentada, contrária à jurisprudência majoritária, com o passar do tempo pode passar a ser vista como a posição mais lógica e razoável, apoiada por vozes corajosas dentro dos tribunais. E talvez, mais à frente, o grupo considere um absurdo não se entender como ultrapassada a jurisprudência dominante e veja como “erro manifesto” decisão contrária à posição por ele defendida. Nesse exemplo, é fácil perceber como o outro lado da disputa também tenderia a perceber como “erro manifesto” decisão que contrariasse a “jurisprudência consolidada”.

Quando ocorre esse processo de polarização de grupo, catalisado por preconceitos cognitivos, acaba sendo natural que a parte vencida na arbitragem, quando não ambas as partes, critiquem a sentença. Nesses casos, o argumento mais comum é o de que os árbitros erraram por não terem sido “técnicos” na análise dos fatos ou do direito. Mas também se ouve exatamente o oposto, no sentido de que os árbitros erraram porque foram “técnicos” demais, não se importando com a “justiça” da decisão. Isso ajuda a mostrar que talvez o verdadeiro motivo da crítica não esteja no “erro” da sentença, mas no seu caráter desfavorável à tese construída e defendida por aquela parte na disputa. O que nos leva de volta ao estudo de Stanford: cada grupo percebeu como injusta a seleção de fatos e argumentos feita pelas reportagens porque ela continha elementos contrários à causa por ele defendida.

É claro que existem instrumentos de contrapeso à polarização de grupo. Empresas e grupos dotados de mecanismos deliberativos que encorajem opiniões internas dissonantes e a busca por informações e argumentos contrários podem gerar opiniões menos polarizadas. Os próprios advogados têm incentivos para agir assim e, no mínimo, o dever ético de prevenir o cliente contra “aventuras” (Código de Ética e Disciplina, art. 2º, par., inc. VII). Mas outra questão é saber se esses freios são adotados com frequência ou se são suficientes para neutralizar os vieses cognitivos e a tendência humana à polarização de grupo.

O objetivo desse texto é chamar a atenção para o fenômeno e para a importância de se o levar em conta na interpretação e administração das críticas por vezes feitas à arbitragem. Reverberá-las e usá-las como mote de iniciativas de reforma sem essa consciência pode causar não apenas erros de diagnóstico como danos graves à arbitragem e à percepção que a sociedade tem dela (base da própria existência de um sistema calcado na vontade das partes, é sempre bom lembrar). Nessa linha, parece útil valorar as críticas indagando-se, por exemplo, se elas foram feitas antes ou depois do desfecho do caso, pelas partes vencidas ou pelas partes vencedoras, se são isoladas ou encontram respaldo na experiência de amostra relevante de usuários etc..

Longe de sugerir que a arbitragem não tenha defeitos ou não possa e deva ser criticada. Ao contrário: ao se levar em conta a realidade pautada por vieses e os motivos por trás das críticas, aumenta-se a chance de se conseguir depurá-las, extraindo o que têm de mais correto e preciso, para tomá-las utilmente como a ferramenta essencial que são para aperfeiçoar a arbitragem e mantê-la sempre a serviço de seus usuários.[1]

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[1] Vallone, Robert P., Ross, Lee e Lepper, Mark R., The hostile media phenomenon: biased perception and perceptions of media bias in coverage of the Beirut massacre. In: Journal of Personality and Social Psychology, 1985, v. 49/3, pp. 577-585. Para algumas das ideias exploradas no texto, cf. Sunstein, Cass, Why societies need dissent, Cambridge, Harvard University, 2005; Kahneman, Daniel, thinking, fast and slow, Nova Iorque, Farrar, Straus and Giroux, 2011.