O Estado da Arte da Arbitragem no Brasil e o Direito Societário

Autor: Diego Franzoni

A discussão sobre a arbitragem no âmbito societário no Brasil ganhou fôlego nos últimos anos em razão de vários fatores: (i) o desenvolvimento e a consolidação da arbitragem em geral; (ii) a crise do Estado como solucionador de litígios, sentida com mais ênfase nos litígios societários, que demandam aprofundamento e especialidade incompatíveis com as funções do juiz estatal; (iii) o desenvolvimento do mercado acionário, especialmente com os níveis específicos de governança corporativa na BM&FBovespa, que exigem a utilização da arbitragem; (iv) o aprofundamento do estudo do tema em trabalhos acadêmicos e obras publicadas; (v) a recente reforma da Lei de Arbitragem, com a inclusão do art. 136-A na Lei das S/A.

Diante desse cenário, parece intuitivo que arbitragem e direito societário combinam. Na maior parte dos casos, a arbitragem traz mais vantagens à sociedade e aos sócios se comparada ao processo judicial. A especialidade dos árbitros é provavelmente a maior dessas vantagens, com a possibilidade de escolha de especialistas no assunto debatido. O árbitro também deve se comprometer com a análise detalhada da causa e é remunerado especificamente para isso. Ao lado disso, a arbitragem pode ser mais célere e flexível, no sentido de se adequar às especificidades do caso concreto. O ambiente em geral mais informal da arbitragem também pode corroborar para uma solução menos traumática e mais eficaz do litígio. E a eficiência, como se sabe, é fundamental para qualquer empresa. Não bastasse isso, a confidencialidade (quando e na medida em que for admitida) também pode ser vantajosa aos envolvidos.

Mas nem tudo entre a arbitragem e o direito societário é fácil. Essa relação também tem alguns pontos de estremecimento. O desenvolvimento da cultura arbitral a respeito de determinado tema pode apontar num sentido oposto ao pensamento vigente no direito societário a respeito da mesma questão, ao menos numa análise superficial. E isso torna o assunto um mundo à parte, seja em relação ao estudo do direito societário, seja em relação ao estudo da arbitragem.

Tome-se a questão do uso dos precedentes. Enquanto no direito societário o seu uso é visto com bons olhos, já que pode dar segurança jurídica e pautar a condução de outras situações semelhantes, no âmbito da arbitragem não é possível falar em “jurisprudência arbitral” no sentido que conhecemos em relação aos tribunais estatais. Em geral os árbitros não pautam suas decisões por precedentes de outros casos. Decisões anteriores em casos semelhantes podem até servir de parâmetro, mas a questão discutida deverá ser sempre analisada em face do caso concreto discutido e de suas peculiaridades. E mesmo que o caso utilizado como parâmetro tenha contornos idênticos ou muito semelhantes ao caso em discussão, isso não traz qualquer garantia de que a solução dada pelos árbitros será a mesma. Enquanto o Judiciário é pautado pela busca da uniformidade de julgamentos, a arbitragem se inclina para a análise específica e detalhada de cada caso concreto, ainda que seja aplicado o mesmo substrato de direito material. Essa característica pode inclusive ter sido considerada pelas partes ao optar pela arbitragem.

Na mesma linha, há a questão da confidencialidade. Enquanto a prática da arbitragem em geral privilegia a confidencialidade, no âmbito do direito societário haverá diversas situações em que o litígio não poderá deixar de ser divulgado a terceiros. No caso de uma companhia aberta (mas não só), ao menos a existência do litígio deverá ser divulgada ao mercado e aos acionistas, que eventualmente poderão ter interesse em integrar o processo como assistentes de alguma das partes. A existência de litígios também pode impactar a circulação de ações da companhia no mercado. Nesse ponto, parece que é a visão da arbitragem que deve ceder em face da necessidade específica de divulgação a respeito da existência do litígio societário a terceiros que a princípio não integram o processo. Esse suposto choque entre a arbitragem e o direito societário pode ser considerado um falso choque, na medida em que a confidencialidade não é um elemento essencial da arbitragem, ainda que seja atrativo às partes na maioria dos casos.

Por fim, ainda na mesma linha de pontuar questões em que há tensão entre a arbitragem e o direito societário, chegamos à questão do direito de recesso, recém-regulada pela Lei. Aqui, a situação fica ainda mais complicada, já que mesmo entre os “comercialistas” não há opinião uniforme sobre a questão. Entre aqueles que estudam o direito societário, há os que enxergam no direito de recesso um fundamental contraponto à arbitragem e às “ameaças” por ela representadas aos direitos essenciais e individuais dos acionistas. Nessa visão, a escolha da arbitragem seria relevante a ponto de ensejar o direito de retirada do dissidente. Ainda dentre os estudiosos do direito societário, há aqueles que militam pela restrição das hipóteses de recesso em qualquer caso, de modo que a escolha da arbitragem não seria suficiente para justificar a sua instituição. Para esses, o recesso é visto com maus olhos por ser uma possibilidade de retirada fácil do acionista descontente, incentivando a saída de capitais da sociedade. Também entre os “arbitralistas”, a questão não é pacífica. Aqueles porventura mais apegados à ideia de autonomia da vontade (individual) para a escolha da arbitragem podem defender a necessidade de concordância pessoal do acionista para que ele fique sujeito aos efeitos da cláusula compromissória. A corrente majoritária responde a essa alegação argumentando que essa decisão, no âmbito societário, é coletiva, sujeitando-se o acionista à vontade da maioria, como em qualquer caso. E o novo art. 136-A da Lei das S/A adotou solução pragmática, instituindo o direito de recesso apenas nos casos em que o acionista dissidente não tiver condições de vender a sua participação no mercado.

Esse é apenas um breve panorama sobre as principais questões em relação às quais se pode verificar divergências entre a visão geral da arbitragem – aplicada aos contratos de troca – e a necessidade de utilizar adequadamente a arbitragem no âmbito das sociedades. A existência dessas discussões e a especificidade da matéria em relação à disciplina e à cultura geral da arbitragem leva à indagação sobre se é necessária regulamentação específica e em que nível essa regulamentação deve se dar – na lei, nos regulamentos das instituições de arbitragem ou nas convenções de arbitragem constantes nos estatutos das sociedades?

Trata-se de fenômeno semelhante àquele que ocorre com a arbitragem em que é parte o Poder Público. A recente reforma da Lei de Arbitragem (pela Lei 13.129/2015) procurou regulamentar a questão, ou ao menos parte dela, com a inserção de disposições que refletem o entendimento sobre o tema que já vinha se consolidando na doutrina majoritária e na jurisprudência. As novas disposições legais, comemoradas por alguns, pouco trazem de novo em relação à cultura que já vinha se consolidando na prática da arbitragem no Brasil. O mesmo ocorreu em relação a diversos outros temas que foram objeto da reforma, como a questão das medidas cautelares e de urgência (arts. 22-A e 22B). As novas disposições servem muito mais para reafirmar o que já vinha sendo aplicado do que para instituir uma nova ordem de ideias. Diante disso, cabe indagar se era realmente necessária uma mudança legislativa e até que ponto ela foi salutar. E mais: vale a pena correr o risco de que o processo legislativo produza retrocessos?[1]

Voltando à arbitragem societária, parece-me que a maior parte das questões difíceis relacionadas ao tema não deva ser regulada na Lei. É possível que esses potenciais problemas sejam resolvidos na cultura da arbitragem, por meio da redação de cláusulas arbitrais adequadas ao perfil da sociedade e à vontade da maioria dos sócios. Além disso, os regulamentos das instituições de arbitragem podem trazer disposições específicas para a arbitragem societária, que se aplicariam nos casos em que a convenção de arbitragem contida no ato constitutivo fosse omissa.

A arbitragem não pode ser demasiadamente engessada por disposições legais ou regulamentares que lhe retirem justamente o caráter que a torna propícia à escolha pelas partes. A regulamentação excessiva e o engessamento da arbitragem pela lei podem torná-la cada vez mais próxima do processo judicial, com desincentivo da sua escolha pelas partes. A necessidade de se pautar em disposições legais para tomada de qualquer solução em relação a questões processuais não combina com a arbitragem, e remete muito mais à atuação do juiz estatal. Por isso toda regulamentação legal da arbitragem deve ser feita com o máximo cuidado, para não desnaturar o instituto. E o exemplo vem novamente da arbitragem envolvendo o Poder Público, hoje (depois da reforma) às voltas com uma grande discussão acerca do cabimento e da necessidade de sua regulamentação no âmbito interno da Administração Pública – e sobre os possíveis efeitos dessa regulamentação perante terceiros e em termos de validade e eficácia das convenções arbitrais celebradas pelo Estado.

À parte disso tudo, a efetividade da arbitragem societária também vai depender sempre do comportamento dos árbitros e das partes (incluindo seus advogados). De nada adianta escolher a arbitragem para, instituído o litígio, comportar-se com as amarras típicas do processo judicial. A arbitragem deve buscar em primeiro lugar resolver o litígio entre as partes de forma pragmática, e quanto mais o fizer, mais será adequada aos litígios societários.

Há que se buscar meios de conciliar a prática da arbitragem com o direito societário, sem que ela deixe de ser arbitragem.

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[1] Como se deu em relação aos vetos do Vice-Presidente da República aos dispositivos da reforma da Lei de Arbitragem pretendida pelo Congresso que tratavam da arbitragem aplicável ao direito do consumidor e ao direito do trabalho. Embora se possa defender que nada mudou, também não é impossível ou improvável que os vetos venham a ser utilizados no sentido de defender o não cabimento da arbitragem nesse setores.