Os Jogos Olímpicos Rio 2016 e a globalização de sistemas jurídicos

Autor: Lucas V. R. da Costa Mendes*

Espero que todos tenham tido a oportunidade de ir ao menos um dia aos Jogos Olímpicos Rio 2016. Foram muitas as experiências, dentre elas, inclusive, a imersão em um contexto jurídico singular.

Assisti algumas modalidades no Parque Olímpico: ginástica artística, esgrima e ciclismo de pista. Em outras palavras, comecei a minha jornada em um ambiente jurídico-cultural em que quanto mais difíceis e bem executados fossem os movimentos dos atletas, maiores as suas chances de vencer. Depois, passei por um contexto social em que um atleta deveria tocar a ponta de sua arma (espada) no corpo do oponente. Acabei em uma realidade na qual o essencial era passar a roda da frente de uma bicicleta por uma linha imaginária.

O interessante é que muito embora as Olimpíadas sejam um único grande evento, cada uma das modalidades conseguiu manter as suas identidades culturais relativamente intactas. Atividades tão particulares, conduzidas de forma independente e harmoniosa a poucos metros de distância umas das outras.

As estruturas jurídicas das Olimpíadas foram concebidas para ser o máximo indiferentes à nacionalidade dos participantes e dos Estados envolvidos nas competições, aí incluído o país sede dos Jogos Olímpicos. Ou seja, não importa se o atleta é da China ou dos Estados Unidos, o relevante é o seu desempenho. Da mesma forma, a escola e as tradições jurídicas do país sede das Olímpiadas influenciam apenas de forma remota a estrutura jurídica dos Jogos, pois, em larguíssima medida, as disputas são resolvidas por meio de arbitragens internacionais, cujo mérito será julgado de acordo com a Carta Olímpica e, dentre outras fontes do direito, os regulamentos aplicáveis.

Ao fundo, portanto, são regras setorizadas, não apenas do direito esportivo, mas de cada uma das modalidades olímpicas, as quais foram constituídas e são implementadas por uma comunidade de experts de nichos específicos com influências apenas remotas de órgãos externos.

Ao todo são 42 modalidades olímpicas, com 306 provas e atletas de 206 países. Cada uma das modalidades é centralizada em uma federação internacional. No caso do voleibol, por exemplo, a responsável é a FIVB – Fédération Internationale de Volleyball. Tais federações internacionais lidam e se relacionam com as federações nacionais de cada país para que, sob uma perspectiva técnico-esportiva, cada uma das provas seja realizada. Assim, exemplificativamente, cabe à Federação de Vôlei da Itália indicar o nome das atletas que representarão aquele país nas provas de vôlei de praia das Olimpíadas.

Além disso, cada um dos países se relaciona com o Comitê Olímpico Internacional (COI) por meio de seu comitê olímpico nacional. O COI, por sua vez, para viabilizar a organização de um evento de tal magnitude, constituiu o Comitê Organizador da Rio 2016, responsável por lidar com todos os demais órgãos e instituições para a consecução dos Jogos.

Essas relações estão sob a jurisdição de tribunais arbitrais a serem constituídos de acordo com o regulamento do Court of Arbitration of Sport (CAS). Ou seja, a Carta Olímpica, instrumento normativo localizado no topo da pirâmide legal das Olimpíadas, determina que todas as disputas relacionadas aos Jogos Olímpicos devem ser submetidas à arbitragem (art. 61.2 da Carta Olímpica). Da mesma forma, todos os Comitês Olímpicos Nacionais e as Federações Internacionais, para viabilizarem o seu cadastro perante o COI, inserem cláusulas arbitrais em seus estatutos, conferindo ao CAS a constituição dos tribunais que julgarão eventuais litígios. Ao final do ciclo, todos os atletas devem assinar o “entry form” para participar dos Jogos, vinculando-se, também, às arbitragens do CAS.

Toda essa estrutura serve para afastar a jurisdição estatal do âmbito das Olimpíadas. Não fosse assim, complexas questões de direito internacional privado poderiam ser suscitadas e, mais deletério, perder-se-ia a técnica e os conhecimentos específicos para o julgamento de casos com muitas particularidades e imersos em uma estrutura complexa e única como a olímpica.

Para dar conta do recado, o CAS constituiu uma “ad hoc division” especificamente para lidar com as disputas que surgiram durante o período da Rio 2016. A sua “jurisdição” teve início 10 dias antes da abertura dos Jogos, quando a vila dos atletas foi aberta, e terminou com o encerramento dos Jogos Olímpicos. Dezoito árbitros renomados e especializados em direito esportivo vieram para o Rio de Janeiro e ficaram à disposição do CAS para atuarem conforme os casos surgissem. Eram muitos casos e “tempo era da essência” na medida em que a participação esportiva de um atleta poderia ser na manhã seguinte ou ainda naquele dia.

O CAS celebra parcerias locais para que advogados fiquem à disposição de eventuais atletas e confederações sem representação técnico-jurídica durante o evento. A parceria esse ano foi realizada com a OAB/RJ, que, por meio de sua comissão de arbitragem, presidida pelo Dr. Joaquim Muniz, colocou 25 advogados à disposição para atuarem quando fosse necessário.

Dentre os casos que os profissionais foram chamados a atuar, um deles se destacou como exemplo do complexo normativo subjacente à Rio 2016 e das peculiaridades da assim chamada Lex Sportiva.

Em resumo, um atleta de uma recente república africana foi levado a crer que teria uma vaga garantida nos Jogos Olímpicos Rio 2016. A sua competitividade em nível internacional nunca foi dúvida. Ele recebeu confirmações da Federação de Atletismo Nacional do seu país e cerca de 15 dias antes do início dos Jogos recebeu um e-mail com a confirmação de sua participação. Anexado a este e-mail se encontrava cópia de sua credencial de atleta para os Jogos. Cinco dias antes da cerimônia de abertura, no entanto, ele recebeu outro e-mail com a informação de que não estava na equipe do país.

O procedimento arbitral teve início no dia seguinte. Um primeiro prazo de 24 horas foi fixado para que as partes apresentassem documentos essenciais à compreensão do caso. Nas 24 horas seguintes seria realizada uma audiência de instrução e, ato contínuo, a sentença arbitral seria proferida. Uma análise tempestiva do caso era essencial para o atleta sair do outro lado do mundo (literalmente) e vir para o Rio de Janeiro a tempo de se preparar para a sua prova[i].

A principal razão para o início da disputa entre o atleta e o Comitê Olímpico Nacional do país africano era a existência de evidências que demonstravam uma atleta ter sido indicada em seu lugar por questões comerciais: ela havia protagonizado um comercial em escala global para uma das principais patrocinadoras dos Jogos Olímpicos. O argumento que os advogados apresentaram ao tribunal arbitral foi que o espírito olímpico vedaria a indicação de atletas por conta de interesses econômicos ou comerciais. A decisão deveria ser realizada por critérios técnicos e conforme o desempenho dos atletas. Interferências como aquela não poderiam ser toleradas no seio de um evento como as Olimpíadas.

O Tribunal Arbitral, após considerar a posição institucional de cada um dos órgãos no contexto normativo das Olimpíadas, identificou as regras que ali deveriam ser aplicadas e concluiu que o atleta não teria direito à vaga. Muito embora a nomeação da atleta parecesse irrazoável e atécnica, o fato é que se tratava de uma vaga feminina, que, por consequência, não poderia ser preenchida pelo atleta.

O caso é, como se percebe, um ótimo exemplo da interação de diferentes órgãos para a realização de um evento grandioso como as Olimpíadas. Mais do que isso, a utilização da arbitragem para a resolução dos litígios parece ser essencial para a preservação da técnica e das características culturais de um ambiente social tão rico, particular e complexo como aquele de cada um dos esportes que compõem os Jogos. Ou seja, a estrutura jurídica adotada pelas Olimpíadas viabiliza a realização de um grande evento (os Jogos Olímpicos), no qual o universo jurídico da ginástica artística convive de forma harmoniosa com as tradições medievais da esgrima e com o hiperdesenvolvimento tecnológico do ciclismo. Um feito e tanto.

Mas, e naquele outro universo – tão mais rotineiro – do direito e das arbitragens comerciais? Não quero forçar o exemplo da estrutura olímpica em demasia, mas o dia-a-dia no escritório parece indicar tantos outros contextos extraordinariamente específicos e independentes, os quais, assim como os Jogos, sofrem influências apenas remotas de órgãos ou tradições jurídicas externas.

Acredito que bons exemplos sejam as arbitragens da International Cotton Association (ICA), as quais, muito embora sob a égide da legislação inglesa, são resolvidas por meio dos regulamentos e jurisprudência daquela própria associação. Exemplo similar é a Federation of Oils, Seeds and Fats Associations (FOSFA), que, assim como a ICA e muitas das federações esportivas, possuem “listas negras” de associados que não cumpriram sentenças arbitrais, garantindo, desta forma, “execução automática” às suas decisões ao, por exemplo, afastar daquelas comunidades agentes que se negam a cumprir as suas regras.

Mesmo em arbitragens administradas pelas grandes câmaras a especialização de determinados nichos se faz evidente. O exemplo flagrante é influência que a International Federation of Consulting Engineers (FIDIC) possui sobre a dinâmica jurídica de muitos contratos de empreitada. Outros tantos exemplos poderiam ser elencados. Parecem, no entanto, corroborar o argumento olímpico: a possibilidade, em um mundo global, de coexistência jurídica saudável entre ambientes sociais tão diversos.

Enfim, e se a globalização estiver dirigindo o direito comercial para soluções cada vez mais deslocalizadas e, também, setoriais e específicas? A arbitragem parece ser o mecanismo natural para a resolução das disputas neste âmbito. Mas, é correto afirmar que vivemos em uma “era da arbitragem[ii], a qual tolera a coexistência de ambientes culturais tanto globais quanto únicos; algo assim, como as Olimpíadas?

Quem sabe. Deixo que os leitores do Blog compartilhem o que pensam. Tudo o que sei é que o espírito olímpico pareceu encontrar o seu habitat natural no Rio de Janeiro nestes últimos dias.

 

* Advogado em Laudelino Mendes Advocacia. Mestre em Direito (LL.M.) por Queen Mary, University of London.


[i] Tratava-se de um caso extraordinariamente emotivo e sensível. O atleta teve o seu pai assassinado em uma guerra civil no seu país de origem e refugiou-se na Oceania, onde teve o seu talento descoberto e treinado. Ele poderia ter tentado participar nas Olimpíadas pelo país em que reside ou pela equipe olímpica dos refugiados. No entanto, preferiu honrar a morte de seu pai correndo pelo seu país natal.

[ii] Expressão retirada do título de um recentíssimo estudo sobre a posição dos “trade usages” no direito comercial atual (GÉLINAS, Fabien, editor. Trade usages and implied terms in the age of arbitration. New York: Oxford University Press, 2016.)