Arbitragem e pandemia: reflexões sobre a atuação do advogado de arbitragem em audiências virtuais

A pandemia causada pelo novo coronavírus (Covid-19) é, sem sombra de dúvidas, um fato sem precedentes na nossa história recente. A alta capacidade de proliferação do vírus impôs a necessária adoção de medidas de distanciamento social e a consequente paralização de grande parte dos serviços e comércioque vem causando um considerável impacto em diversos setores da economia. 

Tais medidas vêm afetando, ainda, o funcionamento de órgãos jurisdicionais estatais e paraestatais, que, observa-se, fazem esforços para harmonizar suas práticas às medidas de distanciamento social impostas, de forma a evitar a negativa de prestação jurisdicional, tão importante nesse contexto de pandemia. No âmbito do Poder Judiciário, além das regras esparsas adotadas por cada tribunal, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) editou diretrizes regulando e uniformizando o funcionamento dos órgãos jurisdicionais em todo país [1]. 

Com relação à arbitragem, pode-se dizer que as instituições arbitrais e demais entidades relacionadas responderam com rapidez ao editarem normas e diretrizes com o intuito de assegurar a continuidade dos procedimentos arbitrais em curso e o acesso à justiça dos usuários da arbitragem enquanto as medidas de distanciamento social perdurarem. Foi o caso, por exemplo, das diretrizes editadas pela Câmara de Comércio Internacional (CCI) [2], pelo International Centre of Dispute Resolution (ICDR) [3], pelo Hong Kong International Arbitration Centre (HKIAC) [4], pelo Korean Commercial Arbitration Board (KCAB) [5], pela Delos Dispute Resolution [6], pelo Centro de Arbitragem e Mediação da Câmara de Comércio Brasil-Canadá (CAM-CCBC) [7], pelo Chartered Institute of Arbitrators (CIArb[8], entre outros. 

Além disso, no último dia 17 de abril, 12 das maiores instituições arbitrais do mundo (dentre elas a CCI, ICDR, LCIA e ICSID) emitiram um comunicado conjunto convocando a comunidade arbitral a “assegurar a continuidade dos procedimentos arbitrais em curso de forma a garantir que as partes envolvidas tenham seus pleitos apreciados sem uma demora excessiva”. O comunicado sugere, ainda, que a comunidade arbitral se reúna para discutir alternativas que assegurem a mitigação dos impactos da pandemia no âmbito dos procedimentos arbitrais [9]. 

É inegável que as medidas de distanciamento social impõem uma série de desafios e alteram de forma significativa a sistemática dos procedimentos arbitrais como conhecemos hoje. Alguns desses impactos, mais mediatos, só poderão ser observados em retrospecto – como um potencial aumento na duração dos procedimentos e o posicionamento do judiciário em eventuais demandas anulatórias relacionadas às medidas adotadas pelos tribunais arbitrais durante a pandemia – outros, contudo, estão se apresentando de forma mais urgentecomo é o caso da transição das audiências presenciais para as audiências virtuais. 

Esses impactos procedimentais mais imediatos – e que, por certo, já vêm se apresentando na prática de muitos advogados e árbitros mundo afora – merecem toda a atenção da comunidade arbitral nesse momento, afinal, são as medidas adotadas hoje que definirão se seremos capazes de converter as adversidades em aprendizado, fomentando o desenvolvimento do instituto da arbitragem. 

AUDIÊNCIAS VIRTUAIS E A ORALIDADE 

Dentre os impactos mais imediatos observados está a transição das audiências presenciais para as virtuais. O que nós, advogados e árbitros, perdemos nessa transição? Quais são as implicações da utilização das plataformas virtuais, não apenas para o bom andamento das audiências, mas também para o convencimento dos árbitros? 

A oralidade, como se sabe, é peça fundamental da prática contenciosa em países que adotam a tradição anglo-saxônica da common law. O instituto da arbitragem, por sua vez, herdou essa tradição, tornando a oralidade um elemento central dos procedimentos arbitrais, seja em países de tradição da common law ou civil law. Os advogados de arbitragem são treinados para formar o convencimento do tribunal através da sustentação oral e da inquirição de testemunhas. As audiências arbitrais costumam ser o ponto alto, o evento mais importante de todo procedimento arbitral. 

Apesar de as videoconferências não serem um elemento necessariamente estranho à arbitragem – sobretudo às arbitragens internacionais –, ter de transportar a integralidade de um evento tão importante como a audiência arbitral para um ambiente virtual e remoto, pode causar alguma resistência e estranheza aos usuários da arbitragem. A pergunta que fica é se há, de fato, algo concreto por trás dessa estranheza, ou se ela seria meramente o reflexo da adoção abrupta de uma prática pouco convencional que, por ocasião das circunstâncias, se mostrou a alternativa mais viável. 

No último dia 29 de abril, a revista britânica The Economist publicou uma matéria intitulada “Why Zoom Meetings are so dissatisfying [10], que coloca em termos práticos o porquê as videoconferências não são tão satisfatórias quanto as reuniões presenciais. O autor apresenta justificativas sociológicas para a resistência às videoconferências e elenca alguns fatores que contribuem para esse fenômeno, como por exemplo o comprometimento do contato visual entre os interlocutores de uma videoconferência; o fato de que o orador, ao falar, também está se vendo no vídeo – o que pode motivar distrações e tentativas de ajustar a linguagem corporal no curso da fala; a existência de distrações espaciais (ex. estante de livros atrás da pessoa que fala, ou uma paisagem da janela), entre outros. 

Em outra matéria que também tangencia esse tema, intitulada “The importance of pauses in conversation [11] – veiculada também pelo The Economist, mas datada de 2017 –, o autor pontua que, embora os diversos aplicativos de videoconferência (Zoom, Blue Jeans, Microsoft Teamsetc) prometam uma experiência quase sem delay, fato é que a transmissão de voz nessas plataformas, no melhor cenário, sofre um atraso de algo em torno de 150 milésimos de segundos (de quem fala), que se somam a mais 150 milésimos de segundo (de quem responde). Isso quando não há alguma intermitência na plataforma ou lentidão causada pelo provedor de internet, o que pode multiplicar em muitas vezes esse delay. Pontua o autor, ainda, que há estudos que comprovam que esse delay se reflete no julgamento dos expectadores, ou seja, o interlocutor que tem a sua fala acometida por delays superiores a 700 milésimos de segundo – o que não é raro nessas plataformas – pode sofrer uma perda de credibilidade no seu discurso o que, por conseguinte, pode afetar a capacidade de convencimento do interlocutor.  

A justificativa central levantada pelos autores dos dois artigos para a resistência às videoconferências é essencialmente a mesma: a violação à chamada regra do “no gap, no overlap – seguida por todos nós, de maneira inconsciente – segundo a qual uma pessoa só pode se manifestar quando a outra deixa de falar, isto é, quando há uma pausa na fala do outro. Nas videoconferências, por mais que a tecnologia e a conexão sejam boas, há sempre algum delay na transmissão, o que acaba fazendo com que as pessoas, fatalmente, falem umas em cima das outras. 

Em recente webinar organizado pelo Centro de Arbitragem e Mediação da AMCHAM [12], José Emílio Nunes Pinto afirmou haver, também, alterações de ritmo e cadência que podem comprometer a oratória durante as videoconferências e, consequentementea interação entre o tribunal arbitral e o advogado, em alguma medidaPontuou, ainda, que a dinâmica de ficar na frente de uma tela por 7-8 horas por dia – o que pode se repetir por muitos dias e até semanas, a depender da audiência – pode tornar a audiência virtual algo demasiadamente cansativo. 

Nos parece que o uso extraordinário das videoconferências como principal meio de realização das audiências arbitrais impõe, sim, uma série de desafios que não podem ser ignorados. O fato de que há, sim, perdas inerentes à realização de audiência virtuais, nos parece muito claro. Conforme dito por Gary Born em recente webinar realizado pela Singapore International Arbitration Court [13]o recurso compulsório às audiências virtuais – motivo pela pandemia – certamente poderá acelerar a popularização das audiências virtuais, contudo, elas não deverão tomar o lugar das audiências presencias, já que o volume de informações – verbais e não-verbais – obtidas em uma reunião presencial é algo difícil de ser replicar virtualmente. 

Contudo, diante do cenário atual, quer nos parecer que a resposta não seria simplesmente evitar as audiências virtuais na esperança de que a volta à normalidade esteja próxima – o que causaria um prolongamento considerável nos cronogramas dos procedimentos arbitrais –, mas sim buscar mecanismos capazes de mitigar ao máximo os impactos negativos inerentes à sua adoção. 

Nesse contexto, ressaltamos algumas medidas que parecem contribuir para o bom andamento das audiências virtuais: (i) treinamento dos advogados para sustentação remota  com profissionais especializados nesse tipo de comunicação; (ii) alinhamento prévio, entre os advogados, acerca de como se dará a comunicação durante a audiência; (iii) realização de “audiências-teste” dias antes da audiência virtual, de forma a antecipar e potencialmente evitar intermitências durante a audiência; (iv) investimento em tecnologia de ponta – pelas instituições arbitrais e escritórios de advocacia – de forma a minimizar, ao máximo, a ocorrência de problemas técnicos na transmissão da videoconferência; e, por fim, (v) garantir que os profissionais de TI dos escritórios de advocacia e das instituições arbitrais estejam preparados para intervir rapidamente na eventualidade de qualquer intermitência.  

POTENCIAIS IMPACTOS À PRODUÇÃO PROBATÓRIA EM AUDIÊNCIAS VIRTUAIS 

Outro ponto sensível nessa nova sistemática das audiências arbitrais virtuais diz respeito à produção probatória, mais especificamente às inquirições de testemunhaNesse particular, alguns questionamentos se colocam: Como assegurar que as testemunhas inquiridas não se beneficiarão da tecnologia para receber informações externas durante a inquirição? Como garantir a segurança das informações e documentos compartilhados na videoconferência? Como identificar e combater o surgimento de potenciais nova táticas de guerrilha no ambiente virtual? 

Sobre a inquirição de testemunhas, principal preocupação parece dizer respeito a como garantir a higidez da prova testemunhal, especialmente considerando que a testemunha não estará no mesmo recinto que o tribunal e os advogados das partes, o que pode dificultar o controle da regularidade da colheita da prova – seja pelo tribunal ou pelos advogados da contraparte. Além do fator distância, há que se considerar que a tecnologia também pode ser uma aliada para práticas indevidas da testemunha durante a inquirição, como, por exemplo, o recebimento de informações externas – o que dificilmente seria percebido pelo tribunal arbitral ou pelos advogados da contraparte em um ambiente virtual. 

Quer nos parecer que a melhor solução – não infalível, porém a que parece ser mais eficaz dadas as circunstâncias – seria garantir a presença de patronos de ambas as partes, junto às testemunhas, durante as oitivas por videoconferência, de forma a garantir que não haverá qualquer interferência externa (o que já é uma prática comum nas inquirições de testemunha por videoconferência)A viabilidade da adoção de tal medida dependerá, é claro, da extensão das medidas de distanciamento social adotadas na sede da arbitragem ou em qualquer outro local onde se possam encontrar os diversos atores do procedimento arbitral. Na impossibilidade da adoção dessa medida com segurança, cabe ao tribunal ponderar a urgência e conveniência de se ouvir essa testemunha remotamente com o risco de eventual comprometimento da prova colhida. 

Outro aspecto que merece atenção é a segurança das informações e documentos trocados durante a audiência. Desnecessário dizer que, a depender do objeto da arbitragem e das partes envolvidasqualquer tipo de falha de segurança pode trazer consequências desastrosas e irreversíveis. É importante, nesse sentido, que haja um especial cuidado na escolha da plataforma virtual utilizada para a realização da audiência, de forma a resguardar a segurança das informações trocadas naquela ocasião. 

Por fim, outro ponto de atenção diz respeito ao potencial surgimento de novas táticas de guerrilha com o advento das audiências virtuaisSerá a tecnologia também uma aliada na adoção de práticas destinadas a tumultuar o procedimento e/ou favorecer indevidamente uma das partes? O que será que as audiências virtuais nos reservam nesse departamento? Será que os árbitros serão capazes de efetivamente identificar essas táticas de guerrilha remotamente? 

Imaginem que durante uma inquirição cruzada remota o advogado faz uma pergunta à testemunha e, na sequência, a testemunha tenha um “problema técnico” e deixe a plataforma virtual antes de endereçar o questionamento. Como poderá o tribunal arbitral diferenciar um problema técnico de uma ação deliberadaConsiderando que o advogado poderá instruir a testemunha – naqueles poucos minutos entre o “problema técnico” e a retomada da audiência – acerca de como ele deverá responder a uma pergunta específica, não seria essa tática de guerrilha causadora de um potencial dano irreversível àquela prova? Esse é apenas um exemplo de tática de guerrilha que as audiências virtuais poderão tornar viáveis, mas, imagina-se, há muitos outros que ainda sequer foram cogitados. 

A resposta para os potenciais problemas listados não é óbvia. É importante, contudo, que haja um esforço da comunidade arbitral – em conjunto com especialistas da área de tecnologia – para antecipar cada vez mais problemas e adaptar as plataformas virtuais existentes à sua existência, de forma a torna-las mais seguras e compatíveis com a realização das audiências arbitrais. 

CONCLUSÃO 

Em síntese, não obstante os diversos desafios que certamente serão enfrentados pelos usuários da arbitragem em razão da novel transição entre as audiências presenciais e as virtuais, quer nos parecer que estes entraves não constituiriam óbices à continuidade dos procedimentos arbitrais e à realização das audiências pela via remota, quando conveniente e adequado. 

A comunidade arbitral reagiu rápida e proativamente às limitações impostas pela pandemia e isso denota a força e a adaptabilidade do instituto da arbitragem a circunstâncias adversas, além de corroborar o quão relevante é a arbitragem, hoje, como mecanismo de resolução de disputas. 

Ainda que as audiências arbitrais virtuais tragam consigo algumas deficiências do ponto de vista procedimental e, portanto, possam não ser adequadas a todas as situações, fato é que a sua adoção, nesse contexto de pandemia, pode fazer com que elas surjam como uma opção mais palatável no futuroespecialmente considerando que os usuários da arbitragem estarão mais familiarizados com a sua utilização e que as tecnologias, por certo, se sofisticarão de forma a atender às necessidades da comunidade arbitral. 

Nas palavras de Platão “a necessidade é a mãe da inovação” e, espera-se, as duras circunstâncias impostas pela pandemia aos procedimentos arbitrais se converterão em desenvolvimento e inovação para o campo da arbitragem. 

 

*       *      * 

[1] Recomendação CNJ 62/2020. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/covid-19-cnj-emite-recomendacao-sobre-sistema-penal-e-socioeducativo/  

[2] ICC Guidance Note on Possible Measures Aimed at Mitigating the Effects of the COVID-19 PandemicDisponível em: https://iccwbo.org/publication/icc-guidance-note-on-possible-measures-aimed-at-mitigating-the-effects-of-the-covid-19-pandemic/?dm=bypass  

[3] AAA-ICDR Virtual Hearing GuideDisponível em: https://go.adr.org/covid-19-virtual-hearings.html?utm_source=website&utm_medium=featurebox&utm_campaign=website_covid-19-virtual-hearing  

[4] HKIAC Guidelines for Virtual Hearings. Disponível em: https://files.essexcourt.com/wp-content/uploads/2020/05/15150223/HKIAC-Guidelines-for-Virtual-Hearings_0.pdf  

[5] Seoul Protocol on Video Conference in International ArbitrationDisponível em: http://www.kcabinternational.or.kr/user/Board/comm_notice.do?BD_NO=172&CURRENT_MENU_CODE=MENU0015&TOP_MENU_CODE=MENU0014  

[6] Delos checklist on holding arbitration and mediation hearings in times of COVID-19Disponível em: https://delosdr.org/index.php/2020/03/12/checklist-on-holding-hearings-in-times-of-covid-19/ 

[7] AR 39/2020. Disponível em: https://ccbc.org.br/cam-ccbc-centro-arbitragem-mediacao/en/ar-39-2020/  

[8] CIArb Guidance Note on Remote Dispute Resolution ProceedingsDisponível em: https://www.ciarb.org/media/8967/remote-hearings-guidance-note.pdf  

[9] Arbitral institutions COVID-19 joint statement. Disponível em: https://iccwbo.org/content/uploads/sites/3/2020/04/covid19-joint-statement.pdf  

[10] Why are Zoom meetings so dissatisfying?” The Economist. May 16th, 2020. Disponível emhttps://www.economist.com/books-and-arts/2020/05/16/why-zoom-meetings-are-so-dissatisfying  

[11“The importance of pauses in conversation” The Economist. Dec 14th, 2017. Disponível em: https://www.economist.com/books-and-arts/2017/12/14/the-importance-of-pauses-in-conversation  

[12] Webinar AMCHAM – Arbitragem e Audiências Virtuais: Experiências e Desafios. Realizado em 14 de maio de 2020. 

[13] “Virtual HearingsContemporary Perspectives – Part 1” SIAC. May 5th, 2020. Disponível emhttps://www.youtube.com/watch?v=6J4dbPI-17c&t=3654s