Arbitragem e Deveres de Informação no Mercado de Capitais

Arbitragem e Deveres de Informação no Mercado de Capitais[i]
Autor: Victor Cogliati Boccardo[ii]

Uma característica recorrentemente enaltecida da arbitragem é a possibilidade de determinar a sua confidencialidade. Conflitos complexos podem ser resolvidos sem que informações delicadas cheguem ao público, o que comprometeria produtos ou negócios de empresas.

Uma pesquisa da Queen Mary University of London[iii] com participantes de procedimentos arbitrais indica que, apesar de a confidencialidade não ser um elemento essencial, 62% dos optantes a considera muito importante (very important) e 24% a considera bastante importante (somewhat important).

A Lei das S.A., por sua vez, traz uma série de obrigações para os administradores de forma a proteger os interesses dos acionistas: o dever de diligência, o dever de lealdade e o dever de informar – entre outros. Focaremos aqui no dever de informar.

A relação entre deveres de informação e confidencialidade da arbitragem é especialmente interessante quando se lida com companhias abertas. Essa comparação desperta interesse, visto que a CVM, na qualidade de autarquia responsável pelo mercado de capitais, regulou o tema das informações que as companhias abertas devem prestar ao mercado por meio da Instrução n.º 358, posteriormente alterada pela Instrução n.º 369.

A obrigação de prestar informações é determinada pelo artigo 3o da Instrução n.º 358, que menciona que cumpre ao Diretor de Relação com Investidores da companhia divulgar “qualquer ato ou fato relevante ocorrido ou relacionado aos seus negócios, bem como zelar por sua ampla e imediata disseminação, simultaneamente em todos os mercados em que tais valores mobiliários sejam admitidos à negociação”.

Não só por meio de comunicados ao mercado e/ou fatos relevantes que chegam as informações aos investidores em geral. As demonstrações financeiras publicadas trimestralmente devem conter informações sobre os litígios nos quais as companhias estejam envolvidas[iv] e, conforme o caso, inclusive já provisionar valores para as perdas, conforme a classificação de “possível”, “provável” ou “remoto” de cada procedimento.

No mais, as companhias devem também entregar anualmente[v] à CVM o Formulário de Referência, documento extenso cujo objetivo é mostrar aos acionistas e ao mercado qual é a situação econômico-financeira da companhia, bem como os riscos inerentes àquele investimento. O Anexo 24 da Instrução CVM 480 – que lida com as regras concernentes ao Formulário de Referência – também determina que a companhia publique informações de litígios judiciais, administrativos e arbitrais nos quais esteja envolvida.

No início de 2016 a Superintendência de Relações com Empresas (“SEP”) da CVM publicou o Ofício Circular CVM SEP n.º 2/2016. O ofício visa a orientar companhias abertas, estrangeiras e incentivadas sujeitas às regras da CVM sobre procedimentos gerais a serem seguidos.

Entre essas informações, o item 10.2.4, que trata dos Fatores de Risco a serem publicados lida, no item “c” com as informações acerca de procedimentos arbitrais, judiciais ou administrativos nos quais o emissor ou suas controladas sejam parte. Nesse sentido, analise-se o trecho do texto do item 10.2.4.c que trata da confidencialidade desses litígios:

Alerta-se que são entendidos como sigilosos somente os feitos judiciais que correm em segredo de justiça, os procedimentos administrativos que são conduzidos sob sigilo por determinação da autoridade administrativa e os procedimentos arbitrais que, por vontade das partes, sejam confidenciais 

A relevância deverá ser aferida pelo emissor levando em consideração a capacidade que a informação teria de influenciar a decisão de investimento. (grifos nossos)

Ou seja, os requisitos estabelecidos pelo item 10.2.4.c são pouco rigorosos, deixando sempre a cargo da companhia emissora a decisão de se a publicação da informação iria ou não “influenciar na decisão de investimento”. Válido mencionar que os mesmos requisitos são também tratados no item 10.2.4.f ao tratar de processos judiciais, administrativos ou arbitrais conexos ou repetitivos e que não estejam sob sigilo.

Logo, a Diretoria de Relações com Investidores das companhias tem uma liberdade muito grande para divulgar ou não uma série de informações relacionadas a procedimentos arbitrais confidenciais que poderiam vir a ser relevantes para o mercado e afetar decisões de investimento dos participantes do mercado.

Justamente visando lidar com o problema da prestação de informações por companhias abertas, uma série de instituições do mercado de capitais criaram o Comitê de Orientação para Divulgação de Informações ao Mercado (“Codim”), atualmente formado por doze entidades[vi], e que lança Pronunciamentos acerca de melhores formas de divulgação de informações ao mercado.

O Pronunciamento de Orientação CODIM 05, de 27 de Novembro de 2008[vii] recomenda:

(…) seja também objeto de publicação de Fato Relevante decisões administrativas, judiciais ou arbitrais, inclusive medidas de urgência (e.g. liminares, cautelares ou tutelas antecipadas), que contemplem matéria de mérito relevante, contrárias ou favoráveis à companhia aberta, mesmo quando proferidas em primeira instância ou que admitam recurso, mas que possam afetar a situação econômico-financeira da companhia. (grifos nossos)

No supramencionado Ofício 02/2016 publicado no início de 2016 a própria CVM recomendou a consulta aos Pronunciamentos do Codim pelas companhias e seus respectivos Diretores de Relações com Investidores quando da análise e tomada de decisão acerca da prestação de informações.

O Colegiado da CVM já decidiu sobre tema semelhante[viii]. Um investidor de companhias listadas no Novo Mercado encaminhou reclamação à CVM na qual alegava que o sigilo nas arbitragens da Câmara de Arbitragem do Mercado (“CAM”) acabava por violar o direito dos acionistas de fiscalizar os negócios sociais, tendo requerido que a CVM determinasse à BM&FBovespa que:

(i)  as regras de confidencialidade da CAM não podem se sobrepor ao dever de divulgação previsto no art. 157 da Lei n.º 6.404/76 e disciplinado pela Instrução CVM n.º 358, de 3.1.2002; e

(ii)  ainda que seja cabível o dever de confidencialidade durante o procedimento arbitral, não parece razoável que o sigilo se estenda também em relação à própria sentença arbitral.

Diversos órgãos se manifestaram no âmbito da supramencionada reclamação. A Procuradoria Federal Especializada (“PFE”) entendeu que a confidencialidade do procedimento da CAM era necessária “para proteger as partes contra uso indevido de informações por terceiros estranhos à relação processual, não sendo possível cogitar sua absoluta incompatibilidade com as disposições da legislação societária atinentes à divulgação de informações”.

No mais, entre outros pontos, a PFE também mencionou que a divulgação de informações relacionadas à sentença arbitral só deveria ocorrer “nas hipóteses em que esta pudesse se caracterizar como ato ou fato relevante, nos termos da Instrução CVM n.º 358/02”.

A BM&FBovespa também foi chamada a se manifestar, tendo mencionado diversos pontos que demonstrariam competir à companhia a responsabilidade de divulgar as informações, e não à Bolsa. A manifestação também ressaltou que o Regulamento da CAM prevê a divulgação de Ementário com as decisões tomadas por tribunais arbitrais que tenham sido constituídos sob as regras da CAM[ix].

Na decisão da CVM[x], o voto do Diretor Otávio Yazbek critica o que ele chama de “fetichização do princípio de full disclosure”. No mais, estabelece que o investidor fez uma interpretação equivocada do artigo 4º, inciso IV, “b” e “c”, e inciso VI da Lei n.º 6.385/1976, visto que isolou tais dispositivos do sistema do qual fazem parte. Assim, Yazbek termina seu voto reiterando que não existe direito à informação in abstracto, não encontrando irregularidade na postura da CAM ou da companhia. Adiciona ainda que seria irregular caso o sigilo previsto no procedimento fosse “impeditivo da prestação de informações obrigatórias ao mercado”.

Ou seja, o entendimento do Diretor foi de que o mercado de capitais deve ser interpretado sistematicamente; e fazendo tal interpretação, não há como entender que o direito à informação seja absoluto. O investidor discordou da decisão, tendo trazido Pedido de Reconsideração, mas o entendimento da CVM foi mantido.[xi]

É de extrema dificuldade encontrar fatos relevantes que tratem de procedimentos arbitrais nos quais as companhias estejam envolvidas, seja em portais especializados da internet[xii], no site da CVM ou nos sites de relações com investidores das respectivas companhias. Isso ocorre pois nem sempre o título do fato relevante ou do comunicado ao mercado ressalta que aquele documento mencionará um procedimento arbitral –especula-se, inclusive, que isso ocorra devido ao pouco interesse que as companhias têm em divulgar essa informação.

Tomemos como exemplo as discussões entre Grupo Pão de Açúcar (“GPA”) e Morzan Empreendimentos, holding de Ponto Frio (“Morzan”). O procedimento foi amplamente divulgado na mídia, tendo em vista tratar-se de dois players extremamente relevantes no mercado brasileiro, e o fato de que GPA tem capital aberto.

Apesar de essa arbitragem ter sido iniciada em 2012 e finalizada em 2015, apenas dois documentos públicos relacionados à arbitragem – entre fatos relevantes e comunicados ao mercado – puderam ser encontrados no site de relações com investidores de GPA. Se considerarmos os fatos relevantes de Via Varejo, subsidiária de GPA que também tem capital aberto e também estava no polo passivo da demanda, esse número sobe para quatro fatos relevantes.

O primeiro fato relevante, de 14 de junho de 2012 colaciona correspondência enviada por GPA no qual se noticia o recebimento da Requerimento de Arbitragem enviado pela CCI. Tal fato relevante foi publicado tanto por GPA, quanto por Via Varejo.

O próximo fato relevante publicado por GPA quanto a esse tema foi apenas em 20 de agosto de 2015, mais de três anos depois, quando menciona que o tribunal arbitral havia decidido que a companhia deveria pagar R$212 milhões à Morzan. No dia seguinte, Via Varejo publicou fato relevante mencionando apenas que o tribunal arbitral havia decidido que não possuía jurisdição em relação à Via Varejo.

Ou seja, os acionistas de GPA teriam passado mais de três anos sem maiores informações do que estava ocorrendo no procedimento arbitral, com exceção apenas do que foi divulgado de maneira mais satisfatória nos Formulários de Referência[xiii] e nas demonstrações financeiras[xiv].

Não há atualmente regulação que estabeleça maiores critérios acerca de momentos ou acontecimentos do procedimento arbitral que precisem ter suas informações publicadas. Com o que está em vigor hoje, a decisão do tribunal arbitral, por exemplo, não precisa ser comunicada ao mercado.

De fato, tendo em vista o que foi publicado nos Formulários de Referência e nas Demonstrações Financeiras, pode-se dizer que a publicação de informações de GPA foi satisfatória. Contudo, enquanto as informações estavam sendo anualmente publicadas em documentos muito mais técnicos e extremamente extensos, ainda que sejam considerados formas de comunicação entre companhia e investidores, os Fatos Relevantes – documentos curtos, simples e de fácil acesso ao investidor via internet – foram totalmente deixados de lado.

Apesar de os Pronunciamentos do Codim – que mencionam claramente a prestação de informações via Fato Relevante – serem extremamente valiosos, são apenas recomendações às companhias, que não precisam segui-los. É necessário que a CVM se pronuncie, regulando o tema de maneira mais específica, sempre buscando proteger o acionista e assegurando que este tome decisões informadas acerca de seu investimento, assim como esclarecendo exatamente quais são os canais de comunicação necessários a cada tipo de informação a ser publicada.

Com o que se tem hoje, as companhias possuem a liberalidade de divulgar as informações acerca desses procedimentos sem grandes diretrizes, o que pode vir a prejudicar o acionista. Não só, a existência de maiores diretrizes também poderia vir a beneficiar as próprias companhias que seguem à risca as regras, visto que estas poderiam se sujeitar a menores riscos e reclamações dos investidores ou da própria CVM.

 


[i] Todas as informações disponíveis no presente artigo são de domínio público conforme os sites indicados nas notas abaixo e disponíveis sempre no site da CVM e no site de Relações com Investidores das respectivas companhias. O autor não teve envolvimento pessoal com qualquer um dos casos relatados no artigo.

[ii] Graduado pela Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas. Advogado em São Paulo.

[iii] 2010 International Arbitration Survey: Choices in International Arbitration. Queen Mary University of London. Disponível em http://www.arbitration.qmul.ac.uk/docs/123290.pdf.

[iv] Para os fins do presente artigo, estamos focando apenas na confidencialidade da arbitragem; contudo, a condenação em qualquer litígio de grande natureza pode vir a afetar negativamente as demonstrações financeiras de uma companhia. Consequentemente, isso pode interferir na decisão de investimento dos participantes do mercado de continuar ou não como acionistas da companhia envolvida naquele procedimento arbitral.

[v] Até 5 meses após o encerramento do exercício social, conforme artigo 24 da Instrução CVM n. 480.

[vi] ABRASCA – Associação Brasileira das Companhias Abertas; ABRAPP – Associação Brasileira das Entidades Fechadas de Previdência Privada; ANBIMA – Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiros e de Capitais; ANCORD – Associação Nacional das Corretoras de Valores, Câmbio e Mercadorias; ANEFAC – Associação Nacional dos Executivos de Finanças, Administração e Contabilidade;  AMEC – Associação de Investidores no Mercado de Capitais;  APIMEC – Associação dos Analistas e Profissionais de Investimento do Mercado de Capitais; BM&FBovespa – Bolsa de Valores, Mercadorias e Futuros;  CFC – Conselho Federal de Contabilidade;  IBGC – Instituto Brasileiro de Governança Corporativa;  IBRACON – Instituto dos Auditores Independentes do Brasil; e IBRI – Instituto Brasileiro de Relações com Investidores.

[vii] Disponível em http://www.codim.org.br/downloads/Pronunciamento_Orientacao_05.pdf.

[viii] CVM, Processo Administrativo n.º RJ 2008/0713, Rel. Dir. Otávio Yazbek, julgado em 9 de fevereiro de 2010.

[ix] Apesar de as regras da CAM determinarem a publicação de Ementário, este não foi publicado até a data do presente artigo.

[x] Disponível em http://www.cvm.gov.br/export/sites/cvm/decisoes/anexos/0005/6517-0.pdf

[xi] Anos mais tarde, mais um caso na CVM levantou novamente a discussão entre arbitragem e deveres de informação utilizando-se de argumentos suscitados pelo Diretor Otavio Yazbek em seu voto no Processo Administrativo RJ2008/0713. Um fundo de investimentos desejava acesso aos documentos de uma arbitragem na qual a Companhia Brasileira de Distribuição estava envolvida em virtude de uma OPA por alienação de controle. Segundo interpretação dos advogados do fundo de investimentos, o Diretor Otavio Yazbek, no Processo Administrativo RJ2008/0713, mencionara que quando houvesse direito à informação em concreto, este prevaleceria sobre o sigilo arbitral. Como o fundo de investimentos participara da OPA, teria direito a ter amplo acesso aos documentos do procedimento arbitral. A Diretora Ana Novaes, relatora deste segundo caso, entendeu que a interpretação feita pelo fundo foi equivocada, pois o Diretor Otavio Yazbek mencionou apenas que o direito à informação deve respeitar a lei societária, e não que este deveria superar o sigilo de um procedimento arbitral. No mais, entendeu que a CVM não tem o poder de conceder acesso a uma arbitragem. Disponível em http://www.cvm.gov.br/export/sites/cvm/decisoes/anexos/0010/8659-0.pdf

[xii] O artigo 3o, §4o, II exige a divulgação de fatos relevantes e comunicados ao mercado em “pelo menos um portal de notícias com página na rede mundial de computadores, que disponibilize, em seção disponível para acesso gratuito, a informação em sua integralidade”.

[xiii] No Formulário de Referência de 2012, não há menção a este procedimento arbitral. No Formulário de Referência de 2013, há uma explicação da disputa quase idêntica ao que fora publicado no Fato Relevante de 14 de junho de 2012, apenas adicionando que GPA havia indicado um árbitro e que entendia que o pedido era improcedente. No Formulário de Referência de 2014, às informações mencionadas em 2013, adicionou-se que alegações iniciais haviam sido apresentadas. No Formulário de Referência de 2015, adicionou-se que já haviam ocorrido as audiências. No Formulário de Referência de 2016, menciona-se que GPA perdeu a arbitragem e que está dando andamento aos pagamentos pleiteados pela contraparte. Todas as informações estão disponíveis no portal de Relações com Investidores de GPA: http://www.gpari.com.br/default_pt.asp?idioma=0&conta=28 e no site da CVM: http://sistemas.cvm.gov.br/?CiaDoc

[xiv] Nas Demonstrações Financeiras de 2012, não há menção a este procedimento arbitral. Nas Demonstrações Financeiras de 2013, repetem-se as informações dadas no Formulário de Referência, ainda mencionando que não houve nenhum tipo de desdobramento da arbitragem, assim como nenhuma consequência financeira. Nas Demonstrações Financeiras de 2014, repetem-se estes comentários. Nas Demonstrações Financeiras de 2015, menciona-se no documento os efeitos fiscais e contábeis (imposto de renda, reserva de lucros e contas a pagar), assim como o passivo a ser pago. Todas as informações estão disponíveis no portal de Relações com Investidores de GPA: http://www.gpari.com.br/default_pt.asp?idioma=0&conta=28 e no site da CVM: http://sistemas.cvm.gov.br/?CiaDoc