Nem tanto ao céu, nem tanto à terra: sigilo e publicidade na arbitragem e a (in)constitucionalidade do art. 189, IV do CPC

Gustavo Bosoni[1]

Há pouco mais de um ano, o tema da publicidade na arbitragem se reacendeu, como efeito de decisões do TJSP a esse respeito, mais especificamente, acórdão de relatoria do Des. Cesar Ciampolini, que manteve decisão da 1ª Vara Empresarial e de Conflitos Relacionados a Arbitragem do Foro Central de São Paulo/SP.[2]

O entendimento então manifestado foi o de que seria inconstitucional a previsão do CPC de que tramitam em segredo de justiça os processos judiciais conexos a arbitragens, nas quais a confidencialidade tenha sido estipulada, como é o caso de medidas de urgência pré-arbitrais, cartas arbitrais, ações anulatórias e cumprimentos de sentenças arbitrais – o art. 189, IV.[3]

Esse entendimento, que já vinha sido adotado de forma recorrente por alguns juízes das Varas Empresariais e de Conflitos Relacionados a Arbitragem do Foro Central de São Paulo/SP, causou controvérsia e, desde a notícia do julgamento do TJSP, tem sido objeto de eventos e artigos.

Parece-nos, entretanto, que o tema tem contornos que permitem uma solução intermediária, ou seja, não entendemos que haja inconstitucionalidade da previsão de segredo estabelecida no CPC, mas também não nos parece que seja o caso de atribuir segredo a necessariamente todos os casos relacionados a arbitragens.

Antes de tudo, é importante ressaltar que, muito embora a confidencialidade seja por muitos vista como uma das vantagens da arbitragem, ela não é um atributo automático desses procedimentos; a Lei de Arbitragem não estabelece a confidencialidade do procedimento arbitral. São as partes, por meio das convenções arbitrais ou do regulamento de arbitragem escolhido, que definem, querendo, que o procedimento arbitral será confidencial.

O debate que se coloca mais fortemente nesse momento, relacionado ao recente entendimento do TJSP, não está na confidencialidade do próprio procedimento arbitral, mas sim, como já indicado, dos processos judiciais relacionados a arbitragens.

Segundo a Constituição Federal, a regra para os processos judiciais é a ampla publicidade, que pode ser restringida “…quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem…” (art. 5º, LX, da CF) e desde que “…a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação…” (art. 93, IX, da CF).

A publicidade dos processos judiciais, portanto, embora seja a regra, pode ser, em casos específicos, mitigada.

Nessa lógica, o art. 189, IV do CPC, ao não estabelecer que necessariamente todo processo relacionado à arbitragem tramitará sob segredo de justiça – mas tão somente discriminar uma das possibilidades de mitigação da publicidade, ainda sob discricionariedade do julgador – não conflita diretamente com as previsões da Constituição, e não é, portanto, inconstitucional.

Veja-se, a esse respeito, que a regra do mencionado dispositivo prevê que haverá o segredo de justiça “…desde que a confidencialidade estipulada na arbitragem seja comprovada perante o juízo…”. O juiz, em linha com as regras da Constituição, permanece responsável pela análise, caso a caso, acerca da eventual atribuição de segredo de justiça.

O dispositivo, que é constitucional, portanto, deve ser objeto de uma interpretação conforme a Constituição.

O Poder Judiciário não segue as mesmas regras da arbitragem e não está submetido à Lei de Arbitragem no que diz respeito ao seu procedimento – é o CPC que serve a este fim. O juiz, portanto, não está vinculado ao acordo das partes quanto à confidencialidade do procedimento arbitral, da mesma forma que não se vincula automaticamente a outras convenções processuais feitas pelas partes, que se submetem ao controle de validade pelo juiz, na forma do art. 190 do CPC.[4] A cláusula de confidencialidade de um contrato, por si só, não é suficiente para afastar o interesse público que motiva a publicidade dos processos judiciais, atribuída constitucionalmente.

Então, para que seja atribuído o sigilo de uma eventual ação judicial relativa a uma arbitragem, é necessário que, nos termos da Constituição, comprove-se que o sigilo é essencial para a defesa da intimidade ou do interesse social.

Isso não afasta, de maneira alguma, que processos relacionados a arbitragens tramitem em segredo de justiça, mas, em linha com as regras constitucionais, demanda que haja motivo para tanto – nesse sentido, o STJ já decidiu, por exemplo, que se admite “…o processamento em segredo de justiça de ações cuja discussão envolva informações comerciais de caráter confidencial e estratégico…” (STJ. 4ª Turma. REsp 1.217.171/RJ. Rel. Min. Luis Felipe Salomão. j. 10.3.2020).

É possível ainda, também como já decidido pelo STJ, em decisão monocrática do Min. Luis Felipe Salomão (CC 122.439/RJ), que seja atribuído segredo de justiça de forma parcial, a documentos específicos no processo judicial, com vistas a equilibrar a necessidade de sigilo e a publicidade do processo (“…em substituição ao pleito de atribuição de segredo de justiça, entendo que o desentranhamento da sentença arbitral juntada às fls. 489-531 e a sua guarda na Coordenadoria da 2ª Seção cumpre o desiderato almejado pela ora requerente…”).

Entendemos, assim, que o endereçamento do tema do segredo de justiça de processos judiciais relacionados a arbitragens mediante a interpretação do art. 189, IV do CPC conforme a Constituição é a abordagem que melhor equilibra o interesse público que fundamenta a regra constitucional da publicidade e os interesses das partes envolvidas nos procedimentos arbitrais, que ainda terão os mecanismos necessários à proteção devidamente motivada da sua intimidade.

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[1] Advogado. Bacharel em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.

[2] SÃO PAULO. Tribuna de Justiça. Agravo de instrumento nº 2263639-76.2020.8.26.0000. 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Relator Desembargador Cesar Ciampolini. Julgado em 2.3.2021.

[3] “Art. 189. Os atos processuais são públicos, todavia tramitam em segredo de justiça os processos: (…) IV – que versem sobre arbitragem, inclusive sobre cumprimento de carta arbitral, desde que a confidencialidade estipulada na arbitragem seja comprovada perante o juízo”.

[4] “Art. 190. Versando o processo sobre direitos que admitam autocomposição, é lícito às partes plenamente capazes estipular mudanças no procedimento para ajustá-lo às especificidades da causa e convencionar sobre os seus ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, antes ou durante o processo. Parágrafo único. De ofício ou a requerimento, o juiz controlará a validade das convenções previstas neste artigo, recusando-lhes aplicação somente nos casos de nulidade ou de inserção abusiva em contrato de adesão ou em que alguma parte se encontre em manifesta situação de vulnerabilidade.”