A Atuação de Amici Curiae em Arbitragens Comerciais

Autor: Bernard Potsch

Matéria objeto de muitos e recentes questionamentos no âmbito das arbitragens de investimento[1], a admissibilidade ou não da atuação de amici curiae no âmbito de arbitragens comerciais ainda é objeto de poucas indagações, e de parcas conclusões[2].

Conceitua-se como amicus curiae – ou “amigo da corte” – aquele que, sem ser parte, é autorizado pelo juiz ou árbitro a prestar-lhe informações, as quais podem ser jurídicas, técnicas ou fáticas. Sua atuação comumente objetiva fornecer esclarecimentos ao julgador sobre matérias relevantes à tomada e à fundamentação de suas decisões, esclarecimentos estes que, ordinariamente, as partes não podem fornecer.

Partindo-se desse conceito, algumas indagações surgem quanto à compatibilidade do instituto com a arbitragem comercial. Abordarei sinteticamente nesse post aquelas duas que considero mais prevalentes e relevantes, quais sejam, (i) a compatibilidade da atuação de amici curiae com a manutenção da vontade das partes como força criadora e motriz da arbitragem comercial; e (ii) a potencial violação do sigilo do procedimento.

Quanto ao primeiro ponto, já preceituaram alguns autores a inadequação da admissão de amici curiae em arbitragens comerciais justamente devido ao potencial desta retirar das partes o controle sobre o processo arbitral[3], com aumento dos custos do litígio e perda de liberdade na fixação das fases procedimentais[4].

O risco é real, mas – entendo – não possibilita atingir conclusão genérica de inadequação do instituto. Isso pois, primeiro, caberá ao próprio árbitro negar a intervenção quando desnecessária e, mais ainda, traçar seus limites quando apta a contribuir com o processo.

Nessa toada, diga-se que, no Brasil, o art. 21 da Lei de Arbitragem possibilita às partes, de comum acordo, convencionarem a forma como se dará o procedimento arbitral, cabendo ao árbitro discipliná-lo na ausência de estipulação específica. Na prática brasileira, raros são os casos em que as partes o fazem diretamente, sendo usual a referência ao regulamento de alguma instituição arbitral.

Análise dos regulamentos mais amplamente utilizados em território nacional revela não existir clara vedação à admissão de amici curiae. Ao contrário, ausente acordo diverso das partes, concedem aos árbitros amplos poderes instrutórios, sujeitos, apenas, à observância dos princípios do contraditório, da igualdade das partes, da imparcialidade e do livre convencimento[5].

Ademais, se é certo que arbitragens comerciais tocam temas essencialmente privados, não se pode negar que há situações específicas em que seus efeitos atingem coletividades alheias ao processo de maneira notadamente gravosa, a justificar a busca de todos os elementos necessários à adequada tomada de decisões, com a qual pode a atuação de amici curiae contribuir.

Aliás, parece derivar do reconhecimento desse fato o Enunciado 5 expedido pelo Centro de Arbitragem e Mediação da Câmara de Comércio Brasil-Canadá – CAM/CCBC através de sua Resolução Administrativa n. 03/2014[6]. Direcionado, a princípio, aos procedimentos arbitrais envolvendo a Administração Pública – nos quais interesses difusos são mais comumente atingidos –, afirma que “É permitida a participação de amicus curiae no procedimento arbitral, desde que previamente autorizado pelo Tribunal Arbitral, que deverá considerar, em seu juízo de conveniência a oportunidade, a relevância da matéria e a representatividade do postulante”.

À luz das pontuações anteriores, parece-me não haver óbice a igual entendimento em processos envolvendo particulares.

Por tais razões, conquanto não se possa menosprezar o papel essencial que a vontade das partes ocupe no surgimento e na condução do processo arbitral, parece-me que, salvo convenção em contrário, e em hipóteses excepcionais e justificadas, pode o árbitro admitir a atuação de amici curiae com base nos seus poderes inerentes de condução adequada do procedimento, garantindo às partes – sempre[7] – a oportunidade de se manifestar sobre os esclarecimentos daí extraídos.

Passando às possíveis consequências da atuação frente ao sigilo do procedimento, mesmo no âmbito das arbitragens de investimento permanece como assunto polêmico[8], quanto mais em arbitragens comerciais.

Contudo, razões diversas militam contra descartar por completo a atuação de amici curiae com base nesse preceito. A primeira – e mais óbvia – é que, sendo ou não o sigilo inerente ao processo arbitral[9], fato é que, no mínimo, está sujeito à liberdade das partes e aos limites legais[10]. Em outros termos, tanto as partes quanto a própria lei podem afastar a completa confidencialidade do processo arbitral, quando, então, perde relevância dita preocupação.

A segunda – e mais importante – é que a atuação como amicus curiae certamente não se confunde com a atuação como parte[11]. Quer-se com isso dizer que, enquanto as partes terão acesso irrestrito ao procedimento arbitral, a atuação de eventuais amici curiae terá suas balizas definidas pelo árbitro. Poderá este, assim, limitar a quais informações do processo terão estes acesso – se a alguma –, de que forma poderão se manifestar, e de que maneira interagirão com as partes.

No tópico, julgo salutar e necessário que, em arbitragens comerciais, a atuação de amicus curiae faça-se nos limites estritamente necessários ao atingimento de um bom julgado[12], procedendo o árbitro com cautela e discrição. Por sinal, deve assim fazê-lo mesmo ao negar o pedido, de modo a não tornar sua resposta instrumento pelo qual se revele informações sigilosas, sem que haja interesse maior que o justifique.

Respeitados esses limites, não se concebe que eventual confidencialidade da arbitragem possa servir de empecilho instransponível à admissão da atuação de amici curiae.

Feitas essas ponderações, algumas conclusões preliminares podem ser traçadas. O instituto não parece ser de todo incompatível com a arbitragem comercial; contudo, a usual prevalência de interesses de cunho privado nesse âmbito conduz a uma série de limitações que, ao fim e ao cabo, devem conduzir à sua admissibilidade apenas e tão somente em situações excepcionais.

Nessa toada, caberá ao árbitro – responsável pela condução do procedimento e com poderes para geri-lo[13] – avaliar se a atuação de um amicus curiae será aceita no caso específico e concreto, e a forma em que ela se dará.

Conquanto trate-se de análise eminentemente casuística, algumas balizas podem ser traçadas de modo a orientar dita decisão. Propõe-se, assim, ao árbitro realizar as seguintes indagações para concluir pela admissibilidade ou não de atuação do amicus curiae: (a) há interesses difusos relevantes atingidos pela decisão arbitral que se almeja?; caso positivo, (b) a adequada tomada de decisão demanda conhecimentos que não possam ser apropriadamente explicitados pelas próprias partes, ou por experts por elas ou pelo tribunal arbitral contratados?[14]; se for o caso, (c) a pessoa ou entidade que se propõe a atuar como amicus curiae detém a expertise e é capaz de prestar os esclarecimentos necessários de maneira apropriada e independente?[15].

Analisadas as circunstâncias específicas do caso, e respondidas afirmativamente as três perguntas, entendo que não há empecilhos legais à admissão de amicus curiae disposto a contribuir com o livre convencimento do árbitro.

Lançadas essa curta provocação à comunidade arbitral brasileira, confia-se que o tema ainda enfrentará múltiplas opiniões, favoráveis e contrárias, em debate salutar à melhor compreensão de tema tão pouco explorado.

 


[1] A título de exemplo, ver BASTIN, Lucas, “The Amicus Curiae in Investor-State Arbitration”, 2012(1)(3) Cambridge Journal of International and Comparative Law; GÓMEZ, Katia Fach, “Rethinking the Role of Amicus Curiae in International Investment Arbitration: How to Draw the Line Favorably for the Public Interest”, 2012(35) Fordham International Law Journal; TRIANTAFILOU, Epaminontas, “A More Expansive Role for Amici Curiae in Investment Arbitration”, Kluwer Arbitration Blog, 11 de Maio de 2009; MCDOUGALL, Andrew de Lotbinière; SANTES, Ank, “ICSID Tribunals Apply New Rules on Amicus Curiae”, 2007(22)(2) Mealey’s International Arbitration Report.

[2] Isso pois, como nota Nigel Blackaby, “whilst public interest groups and other third parties rarely show interest in international commercial arbitration, they have sought to participate in investment arbitrations (…)” (BLACKABY, Nigel, “Investment Arbitration and Commercial Arbitration”, In Pervasive Problems in International Arbitration, 2006).

[3] De modo enfático, Xavier Fabre-Bulle: “Ordinary commercial disputes must not be opened to amici curiae. The parties must be able to remain masters of their dispute and of the procedure for resolving their dispute.” (“Are Arbitration Proceedings Still Exclusively Reserved for Parties?”, In Towards a Uniform International Arbitration Law?, 2005). Ver, também, BORALESSA, Anoosha, “The Limitations of Party Autonomy in ICSID Arbitration”, 2004(15) American Review of International Arbitration.

[4] Ver, por todos, ISHIKAWA, Tomoko, “Third Party Participation in Investment Treaty Arbitration”, 2010(59)(02) International and Comparative Law Quarterly.

[5] Ver, e.g., o art. 7.8 do Regulamento do CAM-CCBC, os arts. 10.2 e 20.1 do Regulamento da CCMA-CIESP/FIESP, e o art. 19 do Regulamento da CCI. Nota-se, ainda, que, nos Termos de Arbitragem padrão do CAM-CCBC e da CCMA-CIESP/FIESP, constam itens, quase idênticos, nesse sentido: “O Procedimento Arbitral desenvolver-se-á de acordo com as disposições deste Termo de Arbitragem, do Regulamento e demais regras procedimentais que forem determinadas pelo Tribunal Arbitral, por intermédio de Ordens Processuais, de modo a que seja garantido o atendimento aos princípios do contraditório, da igualdade das partes, da imparcialidade dos árbitros e do livre convencimento destes.

[6] Disponível em http://www.ccbc.org.br/Materia/1487/resolucao-administrativa-n-0322014.

[7] Assim sustenta Katia Fach Gómez: “If amicus briefs are accepted, parties should be given the opportunity to respond to these submissions. Party response should not depend on the discretion of the arbitral tribunal.” (“Rethinking the Role of Amicus Curiae in International Investment Arbitration: How to Draw the Line Favorably for the Public Interest”, 2012(35) Fordham International Law Journal).

[8] Ver, por todos, LEVINE, Eugenia, “Amicus Curiae in International Investment Arbitration: The Implications of an Increase in Third-Party Participation”, 2011(29) Berkeley Journal of International Law.

[9] No Brasil, importante salientar que a Lei de Arbitragem não impõe a confidencialidade ao procedimento, tendo o art. 189, IV, do Novo Código de Processo Civil previsto que a confidencialidade deve ser pelas partes estipulada. Contudo, diversos dos regulamentos de arbitragem mais utilizados traçam como confidencial a arbitragem com base neles conduzida (v.g. art. 14 do Regulamento do CAM-CCBC, art. 10.6 do Regulamento da CCMA-CIESP/FIESP, e art. 12.1 do Regulamento da CAMARB).

[10] O tema dos limites legais à confidencialidade é amplo e ultrapassa o objeto do presente post. Dessa forma, opta-se por remeter o leitor a textos que cuidaram detidamente do tema: GAGLIARDI, Rafael Villar, “Confidencialidade na arbitragem comercial internacional”, 2013(10)(36) Revista de Arbitragem e Mediação; BRAGHETTA, Adriana, “Notas sobre a confidencialidade na arbitragem”, 2013(23)(119) Revista do Advogado; LÉVY, Daniel de Andrade, “Aspectos polêmicos da arbitragem no Mercado de Capitais”, 2010(7)(27) Revista Brasileira de Arbitragem, pp. 31-36 (especificamente sobre as exceções no mercado de capitais).

[11] Nesse sentido, o CAM/CCBC, nos Consideranda do Enunciado 5 antes referido: “Considerando que o amicus curiae tem por objetivo prestar assistência aos árbitros. Considerando ainda que o amicus curiae não é parte e, portanto, não possui os mesmos direitos e obrigações das partes e não está sujeito aos efeitos da sentença”. Disponível em http://www.ccbc.org.br/Materia/1487/resolucao-administrativa-n-0322014.

[12] Conforme leciona Xavier Favre-Bulle: “Considering the specific nature of the influence exerted by modern amicus curiae, which is likely to defend the case of one party to the detriment of another with a view to safeguarding public interest, it seems necessary to limit the intervention of the amicus curiae to what is strictly necessary. (…) not any intervener can be accepted, the intervention must be justified by an interest deserving protection and the existence of this interest must be verified by the arbitral tribunal in each case.” (“Are Arbitration Proceedings Still Exclusively Reserved for Parties?”, In Towards a Uniform International Arbitration Law?, 2005).

[13] Conquanto se possa argumentar a existência de poderes inerentes e suficientes a permitir ao árbitro admitir e balizar a atuação de amici curiae, fato é que grande parte dos regulamentos arbitrais concede expressamente a este amplos poderes na condução do procedimento. Ver, e.g., arts. 17 do Regulamento da UNCITRAL, 22 do Regulamento da CCI, e 7.8 do Regulamento do CAM-CCBC. Nota-se que tribunais arbitrais já expressamente admitiram a atuação de amicus curiae aplicando o Regulamento da UNCITRAL e versão anterior do Regulamento da CCI.

Ver, ainda, ALSTON, Philip; LOWE Vaughan (eds.), The UNCITRAL Arbitration Rules, 2006, pp.37-38; KASOLOWSKY, Boris; HARVEY, Caroline, “Amici curiae in investment treaty arbitrations: authority and procedural fairness”, 2009(2) Stockholm International Arbitration Review.

Digna de nota a conclusão de Caio Campello de Menezes: “Nesse sentido, embora, em regra, são os árbitros que detêm o poder de controlar o processo e, portanto, o poder discricionário de admitir ou não a participação do amicus curiae (como parte do processo de tomada de decisão), as partes não podem deixar de ser ouvidas. Afinal, são seus interesses que estão em jogo e a abertura indiscriminada da arbitragem a terceiros pode comprometer os direitos das partes.” (“O papel do amicus curiae nas arbitragens”, 2007(4)(12) Revista de Arbitragem e Mediação).

[14] Nesse ponto, importante salientar que a figura do amicus curiae não se confunde com aquela do expert. Enquanto esse último tem como objetivo primordial responder às indagações das partes e do tribunal arbitral, o amicus curiae visa resguardar interesses difusos relevantes afetados pela decisão, trazendo elementos fáticos, jurídicos e técnicos específicos a tal fim. A diferenciação é importante pois, frequentemente, tais elementos são desconsiderados pelas partes por serem alheios ou contrários aos seus próprios interesses. Em outros termos, a atuação do amicus curiae pode vir a se justificar como forma de dar voz a interesses difusos relevantes que pouco, ou nada, interessaria às partes trazer à atenção dos árbitros.

[15] Para síntese dos critérios propostos por outros autores no âmbito das arbitragens de investimento, ver CAMPELLO, Caio, “O papel do amicus curiae nas arbitragens”, 2007(4)(12) Revista de Arbitragem e Mediação, p.99.