Arbitrabilidade objetiva em contratos de concessão

Bruna Maria Pereira Menoncin[1]

O advento da Lei nº 13.129/2015, que alterou a Lei nº 9.307/1996 (Lei de Arbitragem), representou inegável avanço no tema da “Arbitragem na Administração Pública”, especialmente no que diz respeito à arbitrabilidade subjetiva. Assim é que, diante da autorização expressa em lei, não há mais espaço para se questionar o cabimento desse método de resolução alternativa de conflitos em controvérsias das quais o Poder Público é parte (seja, por intermédio de entidades da Administração Pública direta ou indireta). O mesmo já não se pode inferir a propósito da arbitrabilidade objetiva[2], tema ainda envolto por diversas ordens de questionamentos, notadamente em contratos de concessão de serviços públicos (de que trata da Lei nº8.987/1995). Nesse quadrante, a hipótese de pesquisa que se pretende responder, com o presente estudo, é a seguinte: quais matérias integram o conceito de arbitrabilidade objetiva em contratos de concessão?

O equacionamento do tema vem sendo feito, de forma evolutiva. Como é de conhecimento convencional, o exercício da função administrativa se volta, sempre, à realização do interesse público, o qual é, per se, indisponível (conceito dúctil, aberto e indeterminado). Daí que o fato de a referida alteração legislativa ter mantido a redação original do art. 1º, caput, da Lei nº 9.307/1996, prevendo que serão submetidos ao juízo arbitral os “litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis”, sem atentar para as especificidades que a transposição desse conceito do direito privado para o domínio do direito público merecia, deixou, ainda, em aberto a definição dos lindes da arbitrabilidade objetiva. Dito em outros termos, o legislador ordinário perdeu uma excelente oportunidade de delimitar o conceito de “direitos patrimoniais disponíveis” e, ainda, de prever um rol, ainda que exemplificativo (numerus apertus), de matérias que possam ser arbitráveis, quando se tratar de arbitragem que envolva o Poder Público. Assim, compatibilizar os limites objetivos da matéria arbitrável com as obrigações legais e os interesses públicos perseguidos pelas entidades estatais é questão que vem demandando aprofundamentos.

A literatura especializada tem envidado esforços para conferir contornos mais precisos e seguros à arbitrabilidade objetiva, em litígios envolvendo a Administração Pública. No que se refere aos contratos administrativos tradicionais (dos quais trata a Lei nº 8.666/1993), Alexandre Aragão[3] defende que “se a prerrogativa examinada decorrer diretamente da lei (ou de qualquer outra fonte heterônoma), ela será insuscetível de apreciação em instância arbitral. Por outro lado, caso o direito sub judice, ainda que previsto mediatamente em Lei (ou em outro ato normativo estatal), demandar o assentimento particular para a sua constituição, não necessariamente para o seu exercício, ele poderá ser objeto de arbitragem”. Na mesma linha, Gustavo Schiefler[4] propõe um critério de exclusão, aplicável a qualquer contrato administrativo, segundo o qual as cláusulas contratuais que traduzam prerrogativas protetivas do interesse público, também conhecidas como “cláusulas exorbitantes”, “formalizam, no contrato administrativo, direitos indisponíveis da Administração Pública, que não podem ser renunciados, alienados ou transferidos por seus representantes e, por consequência, não pode ser objeto de arbitragem”.

Especificamente a propósito dos contratos de concessão, o tema começou a ser vertido, por intermédio da inclusão do art. 23-A à Lei Geral de Concessões (Lei nº 8.987/1995), levada a efeito pela Lei nº 11.196/2005, que passou a prever a possibilidade de o contrato de concessão empregar mecanismos privados para resolução de disputas decorrentes ou relacionadas ao contrato de concessão, inclusive a arbitragem, a ser realizada no Brasil e em língua portuguesa, nos termos da Lei nº 9.307, de 23 de setembro de 1996[5]. Cuida-se de previsão normativa intrínseca ao regime jurídico desses contratos, isso porque trata-se de ajustes que possuem natureza incompleta e dinâmica[6], estando sujeitos a toda sorte de alterações contratuais durante seu longuíssimo prazo de execução e, consequentemente, a conflitos de interesse daí decorrentes. Assim, alinhado à lógica da consensualidade[7], o legislador reconheceu na Arbitragem o mecanismo mais consentâneo com a equação econômico-financeira que sustenta essa avença, uma vez que “a expertise dos árbitros servirá de importante instrumento para colmatar lacunas contratuais propositalmente deixadas pelas partes[8]”, bem como viabilizará uma resolução mais célere do conflito, reduzindo os custos de transação[9].

Assim é que, diante da arquitetura jurídico-econômica destes ajustes, se passou a defender o entendimento de acordo com o qual “os atos de império consubstanciam decisões privativas do Estado, que não podem ser apreciadas por um órgão arbitral, de natureza privada. […] Por outro lado, as cláusulas, termos e condições do contrato de concessão que tratarem de matéria de natureza econômico-financeira concernem direito disponível e são plenamente arbitráveis”. [10] O tema não é tão simples assim, no entanto. Atento ao fato de que alterações em cláusulas regulamentares (aquelas derivadas do poder de império da Administração) muitas vezes implicam reflexos econômicos, Rafael Veras de Freitas[11] entende que “são “direitos patrimoniais disponíveis”, no âmbito dos contratos de concessão, o seu equilíbrio econômico-financeiro e as alternativas adequadas para a sua manutenção; as eventuais disputas acerca dos bens reversíveis, quando de sua extinção; e a validade da própria cláusula compromissória”. [12]

Maurício Portugal Ribeiro, por sua vez, entende que “todas as referências que existiam na legislação sobre a necessidade de decisão judicial (por exemplo, o art. 39, da Lei 8.987/95) devem ser entendidas como exigindo decisão arbitral, nos casos em que os contratos preverem a submissão dos conflitos a arbitragem”.  E conclui no sentido de que “Por isso, entendemos que, por exemplo, a verificação do descumprimento do contrato pelo Poder Concedente para decretação da rescisão pode ser realizada por arbitragem. Também achamos perfeitamente viável o uso da arbitragem para a definição do valor da indenização por investimentos não amortizados em bens concessão [sic], em qualquer dos casos de extinção do contrato”[13].

Incorporando tais contribuições doutrinárias, a Lei nº 13.448/2017, que estabelece diretrizes gerais para prorrogação e relicitação dos contratos de parceria nos setores rodoviário, ferroviário e aeroportuário da Administração Pública federal, em seu art. 31, §4º, prescreve o deve ser entendido por “controvérsias sobre direitos patrimoniais disponíveis”, no âmbito dos contratos de parceria: (i) as questões relacionadas à recomposição do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos; (ii) o cálculo de indenizações decorrentes de extinção ou de transferência do contrato de concessão; e (iii) o inadimplemento de obrigações contratuais por qualquer das partes.

Recentemente, o tema ganhou novos contornos. A Agência Nacional de Transportes Terrestres – ANTT expediu a Resolução nº 5.845, de 14 de maio de 2019, que dispõe sobre as regras procedimentais para a autocomposição e a arbitragem no âmbito da agência. O art. 2º do referido normativo prevê que são considerados direitos patrimoniais disponíveis, em contratos de concessão por ela regulados: “I – questões relacionadas à recomposição do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos; II – indenizações decorrentes da extinção ou transferência do Contrato; III – penalidades contratuais e seu cálculo, bem como controvérsias advindas da execução de garantias; IV – o processo de relicitação do contrato nas questões que envolvam o cálculo das indenizações pelo órgão ou pela entidade competente; e V – o inadimplemento de obrigações contratuais por qualquer das partes.” E, ainda, inovou, em seu parágrafo único, ao dispor que “Quaisquer outros litígios, controvérsias ou discordâncias relativas a direitos patrimoniais disponíveis decorrentes do contrato não previstos acima poderão ser resolvidos por arbitragem, desde que as partes, em comum acordo, celebrem compromisso arbitral, definindo o objeto, a forma, as condições, conforme definido no art. 12.”.[14]

Assim, é de se inferir, a partir da análise doutrinária e legislativa acima apresentada, que integram o conceito de arbitrabilidade, em contratos de concessão, ao menos: (i) as questões relacionadas à recomposição do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos; (ii) os cálculos de indenizações decorrentes da extinção ou transferência do Contrato, bem como do inadimplemento de obrigações contratuais por qualquer das partes; e (iii) a aferição da validade da cláusula compromissória. É dizer, a definição de um conceito de arbitrabilidade objetiva, em contratos de concessão de serviços públicos, vem sendo, paulatinamente, construído, numa densificação que aprimora o ambiente de negócios público-privados, ao lhe conferir maior segurança jurídica na solução de conflitos.

 

 

[1] Graduada pela Faculdade de Direito da UERJ, advogada na Lessa Bueno Coelho e Véras Advogados.

[2] O presente trabalho tem como premissa o entendimento já consolidado pela doutrina segundo o qual o uso da arbitragem pela Administração privilegia o interesse público. Tem-se como clara a noção de que o que é indisponível é o interesse público, e não os direitos de que a Administração é titular. Conforme ensina o Ministro Eros Grau, não há “correlação entre disponibilidade ou indisponibilidade de direitos patrimoniais e disponibilidade ou indisponibilidade do interesse público” (GRAU, Eros Roberto. Arbitragem e contrato administrativo. Revista da Faculdade de Direito da UFRGS. v. 21, Março/2002), caso contrário a Administração não estaria autorizada a contratar, ou realizar qualquer ato que importasse em transferência, alienação, cessão, renúncia, transação ou negociação.

[3] ARAGÃO, Alexandre Santos de. Arbitragem no Direito Administrativo. Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03, p.19-58, jul./set. 2017.

[4] SCHIEFLER, Gustavo Henrique Carvalho. Arbitragem nos contratos administrativos e o critério para identificação dos litígios que envolvem direitos patrimoniais disponíveis. Disponível em: www.zênite.com.br

[5] Não se desconhece, porém, que desde sua redação original a Lei nº 8.987/1995 já previa, em seu artigo 23, inciso XV, que são cláusulas essenciais a esses contratos as relativas “ao foro e ao modo amigável de solução das divergências contratuais”.

[6] Segundo Egon Bockmann Moreira, “Os contratos de concessão são incompletos e dinâmicos – seja devido ao elevado volume de informações, seja por conta de seu longo prazo, seja em razão do elevado custo para a construção do modelo concessionário. São pactos que precisam ser compreendidos como contratos abertos, pois convivem e se nutrem da grande quantidade de informação diariamente recebida. (…) Daí também a necessidade da previsão de reajustes, revisões periódicas, compromissos arbitrais e outras medidas que atenuem os custos oriundos de eventos que possam agredir a estrutura do contrato. Isso porque, se algo é certo no longo prazo, trata-se da efetiva existência das alterações contratuais (unilaterais e/ou circunstanciais).” (MOREIRA, Egon Bockmann. Direitos das Concessões de Serviço Público. Inteligência da Lei 8.987/1995 (Parte Geral). São Paulo: Malheiros, 2010. p. 409).

[7] “O movimento pró-consenso atualmente verificável é apontado como decorrência de a celebração de acordos no âmbito da Administração Pública se coadunar com as demandas, cada vez mais incisivas, por celeridade no provimento administrativo, participação do administrado na tomada de decisões administrativas e eficiência quanto à conformação da atuação administrativa. Ademais, a preocupação com a governança também pelo Direito (Administrativo) coloca em voga o tema da consensualidade, então visualizada como um instrumento de grande valia à eficácia na atuação administrativa.” (SCHIRATO, Vitor Rhein; PALMA, Juliana Bonacorsi de. Consenso e legalidade: vinculação da atividade administrativa consensual ao Direito. Revista Brasileira de Direito Público ‐ RBDP. Belo Horizonte, ano 7, n. 27, out. / dez. 2009)

[8] FREITAS, Rafael Veras de. Novos desafios da arbitrabilidade objetiva nas concessões. Revista de Direito Público da Economia – RDPE. Belo Horizonte, ano 14, n. 53, p. 199-227, jan./mar. 2016. p. 08.

[9] Nesse sentido, Selma Lemes leciona que “a arbitragem como instrumento jurídico repercute favoravelmente na economia do contrato administrativo (à luz dos princípios jurídicos) e que gera eficiência para a contratante (Administração), para o contratado (agente privado) e para a sociedade, ao propiciar a redução no custo de transação.” (LEMES, Selma. Arbitragem na Administração Pública. Fundamentos Jurídicos e Eficiência Econômica. São Paulo: Quartier Latin, 2007. p. 197)

[10] “PINTO, José Emilio Nunes. A arbitrabilidade de controvérsias nos contratos com o Estado e empresas estatais. In: Revista Brasileira de Arbitragem, Porto Alegre, v. 1, n. 1, jan./mar. 2004. p. 15-16).

[11] FREITAS, Rafael Veras de. op. cit. p. 23

[12] Em sentido aproximado, confira-se: KLEIN, Aline Lícia. A arbitragem nas concessões de serviços públicos. In: A arbitragem e o poder público. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 77-78-79.

[13] RIBEIRO, Mauricio Portugal. 10 anos da Lei de PPP e 20 anos da Lei de Concessões. Viabilizando a implantação e melhoria de infraestruturas para o desenvolvimento social. Disponível em: http://www.portugalribeiro.com.br/wpp/wp-content/uploads/10-anos-lei-ppps-20anos-lei-concessoes.pdf

[14] Frise-se que a aplicação dessa Resolução respeitará as cláusulas compromissórias celebradas antes de sua vigência (art. 29); já os contratos que não contenham a cláusula compromissória e que forem aditados, nos termos do art. 31, §1º da Lei nº 13.448, de 05 de junho de 2017, deverão observar suas regras (art. 27).