Interesse Público e arbitrabilidade: possibilidade e limites

Autor: Antonio Carlos Nachif Correia Filho

SUMÁRIO: I. Introdução – II. Interesse público: inevitável análise casuística para concretização dos interesses coletivos (públicos) III. Diretrizes para determinação da arbitrabilidade objetiva; IV.  Considerações finais.

I. INTRODUÇÃO

 A arbitrabilidade objetiva de disputas com a administração pública[1] é tema polêmico. Este artigo tratará desse tema em duas partes.

A primeira demonstrará a relevância da definição do conceito de interesse público (primário) para avaliar as possibilidades e limites da arbitrabilidade de questões envolvendo a administração pública.

A segunda proporá método para que, por meio de diretrizes, não se deixe de determinar e aplicar tal definição a cada controvérsia envolvendo a administração pública e, assim, verificar adequadamente sua arbitrabilidade em cada caso concreto.

II. INTERESSE PÚBLICO: INEVITÁVEL ANÁLISE CASUSÍSTICA PARA CONCRETIZAÇÃO DOS INTERESSES COLETIVOS (PÚBLICOS) 

Muitos se valem da diferenciação entre interesse público primário e secundário para definir a arbitrabilidade de disputas com a administração pública.

Sob essa ótica, seriam inarbitráveis as controvérsias que dissessem respeito ao interesse público primário.[2]

A difusão da classificação divisória do interesse público em primário e secundário no Brasil, que já se afirmou ser seguida pela grande maioria da doutrina pátria[3], é geralmente atribuída às lições do jurista italiano Renato Alessi.[4]

Segundo Alessi, em resumo, o interesse público primário seria composto pelo complexo de interesses individuais predominantes em determinada ordem jurídica estabelecida pela coletividade, ao passo que os interesses secundários seriam aqueles da “administração-entidade”, que devem ser atendidos se e na medida em que coincidirem com o interesse público primário.[5]

A distinção parece, de fato, ser útil como critério de arbitrabilidade, tanto que adotada (sob a perspectiva da disponibilidade) no art. 1º, par. ún., do Decreto 46.245/2018 do Governo do Rio de Janeiro e pelo STJ[6].

Assumindo, assim, a utilidade desse critério, resta saber quais disputas ou questões podem interferir em interesses ou direitos componentes do interesse público primário. É nessa questão, a nosso ver, que reside uma das maiores dificuldades do tema da arbitrabilidade objetiva de conflitos com a administração pública.

Essa dificuldade é não somente teórica, como prática, como demonstram norma recentemente promulgada[7] e julgados dentre os mais recentes sobre a matéria no âmbito do TCU[8] e do STJ[9], por se contradizerem em alguma medida ao tratarem da arbitrabilidade de questões associadas a aspectos econômico-financeiros de contratos com a administração pública.

Nesse contexto, a diferenciação entre interesse público primário e secundário parece não ser tão profunda quanto desejável no julgamento de casos concretos pelos nossos tribunais. Isso, porque geralmente não se esclarece, com adequada clareza e profundidade, os porquês de as disputas interferirem ou não no interesse público primário e, assim, serem ou não disponíveis. Na verdade, muitas vezes sequer se define o conceito de interesse público adotado para os fins do julgamento.

Por isso, ainda que útil, o critério baseado na distinção entre interesse público primário e secundário é insuficiente se não houver (i) a conceituação e concretização do interesse público primário envolvido em cada caso concreto, com adequada explanação dos motivos pelos quais a disputa em questão está no âmbito daquele interesse público, e, (ii) assim, a delimitação de quais questões se referem ao interesse público primário ou ao secundário.

Afinal, o interesse público primário é conceito jurídico indeterminado e, como tal, sua definição deverá ser feita in concreto, caso a caso, a depender dos interesses envolvidos[10]. E, sendo assim, é preciso escolher interesse público compatível com o ordenamento jurídico que se adeque à aplicação no caso concreto, i.e., seja satisfatório para a solução do caso sob julgamento[11].

O que nos parece faltar, principalmente, nas decisões sobre arbitrabilidade objetiva das disputas envolvendo a administração pública é, justamente, a explicitação dessa escolha. E, a partir dela, o exercício inevitável e fundamentado de concretização do interesse público (primário) e, consequentemente, da avaliação da arbitrabilidade objetiva de disputa(s) específica(s) envolvendo a administração pública.

A propósito, sugerimos, inclusive para evitar as confusões que giram em torno da definição do dito interesse público, que a expressão interesse público seja substituída por interesses coletivos (por ser esta mais próxima, a nosso ver, do conceito de interesse público primário acima referido), os quais dependerão de avaliação caso a caso[12], para fins de determinação de arbitrabilidade objetiva de questões.

Não se ignora que a aqui defendida necessidade avaliação caso a caso não é ideal para o jurista que procura solução clara para temas espinhosos, como é este da arbitrabilidade objetiva.

De todo modo, e inevitabilidade dessa análise caso a caso não passou despercebida por um número considerável de estudiosos do tema da arbitrabilidade objetiva dos conflitos com a administração pública[13].

Por tudo isso, não parece valer “lutar contra” essa resposta que remete à análise casuística, quando ela é, a nosso ver, inevitável e, talvez, a única de fato possível para o estudo adequado e útil do tema.

Portanto, parece-nos que a análise do tema deve ser focada nos critérios substanciais para delimitação do envolvimento ou não de interesses coletivos e, portanto, indisponíveis e inarbitráveis em disputas com a administração pública[14].

Todavia, não nos parece que a doutrina e a jurisprudência sobre arbitrabilidade objetiva tenham dado a devida atenção à construção e aprofundamento dos critérios de definição de interesses coletivos ao tratar da arbitrabilidade objetiva das disputas envolvendo a administração pública.

Essa falta de critérios gera insegurança jurídica na aplicação das normas do nosso ordenamento no que toca ao tema.

Por isso, sugerimos aqui a adoção do critério de indisponibilidade no direito administrativo proposto por JUSTEN FILHO: os direitos fundamentais[15].

Longe de ter a pretensão de delimitar qual seria o conteúdo dos interesses coletivos (ou do interesse público primário), o nosso objetivo é chamar a atenção para o ponto de que a concretização desses interesses é indispensável para que se possa determinar a (in)arbitrabilidade de disputas a eles relacionadas.

III. DIRETRIZES PARA DETERMINAÇÃO DA ARBITRABILIDADE OBJETIVA

Com base nas premissas estabelecidas no capítulo anterior, propomos a seguir um método, baseado em diretrizes, de análise da arbitrabilidade objetiva de conflitos envolvendo a administração pública, em quatro passos.

Os dois primeiros passos são representados por diretrizes que chamaremos de negativas, por exigirem do intérprete um não fazer:

  • não invocar genericamente, in abstracto, o denominado princípio da indisponibilidade o interesse público sem, antes, definir a acepção de interesse público adotada; e
  • não afirmar genericamente que determinada matéria, questão ou disputa é de interesse público sem, antes, definir quais são os interesses coletivos[16] associados àquela matéria, questão ou disputa.

Os dois últimos passos consistem em duas diretrizes que chamaremos de positivas, por demandarem do intérprete um fazer, para o fim de:

  • identificar, no caso concreto, se há e quais são os interesses coletivos associados à matéria, questão ou disputa cuja arbitrabilidade se está avaliando; e
  • ponderar, no caso concreto, se existe risco de interferência, por uma decisão arbitral, nos interesses coletivos identificados no passo 3.

Seguido esse método e identificado, no passo 3, que não há, nem remotamente, interesses coletivos envolvidos, pode-se dizer com alguma segurança que a matéria é arbitrável. Isso, porque, nessa hipótese, em princípio não deve haver indisponibilidade que limite a arbitrabilidade da disputa.

Parece ser o caso, p. ex., de demanda movida por concessionário de serviço público em face da administração pública que tenha por objeto apenas a declaração de responsabilidade da administração pela extinção do contrato e a sua condenação a pagar indenização ao concessionário por danos decorrentes dessa extinção.

No entanto, se a resposta no passo 3 for positiva, a questão torna-se mais sensível, pois parece haver risco de indisponibilidade a depender da matéria, questão ou disputa em jogo. Neste estágio da análise, é muito importante o exercício de ponderação do risco de interferência nos interesses coletivos.

A propósito, daremos como exemplo a recomposição do equilíbrio-econômico financeiro que, como visto no capítulo anterior, pode gerar polêmica.

Há quem sustente que “tudo o que diga respeito, tenha reflexo patrimonial e esteja relacionado ao equilíbrio econômico-financeiro do contrato será suscetível de arbitragem”.[17]

No entanto, parece-nos que, apesar de a regra ser a disponibilidade de matérias, questões ou disputas associadas ao equilíbrio econômico-financeiro de contratos com a administração pública, isso não dispensa a ponderação descrita no passo 4 acima, para identificar eventuais exceções a essa regra.

Vejamos a seguir dois exemplos, que a partir de um exercício de ponderação podem levar à conclusão de que, em um caso, disputa associada a equilíbrio econômico-financeiro de um contrato é disponível, e outra em que a disponibilidade é, no mínimo, bastante questionável.

O primeiro exemplo é o de um contrato de execução de obra de uma universidade pública em que se identifique uma dificuldade topográfica consistente em rochas com composição excepcionalmente rígida no terreno.

A existência dessas rochas não foi identificada no momento do estudo e planejamento da obra, mas apenas no curso da sua execução.

A continuidade da obra dependerá da compra ou locação de um equipamento caríssimo que seja apto e perfurar aquelas rochas e, assim, permitir a construção da fundação da obra.

A administração pública e o contratado divergem, à luz do contrato, sobre quem deve arcar com os custos imprevistos relacionados a tal equipamento.

No passo 3 acima sugerido da análise da arbitrabilidade desta controvérsia, o intérprete identifica, por se tratar da construção de uma universidade, a educação como direito fundamental indisponível[18] relacionado (ainda que remotamente).

De todo modo, neste caso parece claro que o risco de interferência no interesse coletivo à educação é nenhum ou, se algum, mínimo.

Por isso, qualquer um certamente se sentiria confortável em dizer que a disputa sobre o equilíbrio-econômico financeiro desse contrato é arbitrável.

Por outro lado, como segundo exemplo, tem-se um contrato de terceirização de serviço de saúde, que, independentemente da discussão sobre sua constitucionalidade, sabe-se ser ou ter sido uma realidade no Brasil.[19]

Imagine um pleito de reequilíbrio-econômico financeiro pelo contratado, sob o fundamento de que o preço dos insumos de sua atividade subiu de forma desproporcional e imprevisível e, portanto, ele precisa de um ajuste na sua remuneração pela administração pública.

O contratado sustenta que, sem esse reequilíbrio, terá que interromper a prestação de serviço hospitalar em região em que ele é o único a prestar esse serviço.

Nesse caso, também de reequilíbrio econômico-financeiro, identifica-se no passo 3 da análise o direito à saúde, que é considerado fundamental e indisponível[20], assim como se identificou a educação no primeiro exemplo.

Aqui, porém, diferentemente do que se viu no primeiro exemplo, parece claro o alto risco de interferência nos interesses coletivos e, por consequência, não nos parece que seria irrazoável concluir pela inarbitrabilidade da disputa relacionada ao reequilíbrio econômico-financeiro desse contrato.

Esses dois exemplos, apesar de extremos, parecem suficientes para exemplificar a utilidade, em algum medida, das diretrizes aqui propostas, que se espera poderem contribuir de alguma forma para a difícil tarefa de definir a arbitrabilidade de disputas envolvendo a administração pública.

Por fim, vale observar de interesses públicos e, portanto, o conceito de disponibilidade são mutáveis e, por mais este motivo, as diretrizes sugeridas devem ser aplicadas caso a caso e serem sempre reavaliadas, a depender da disputa in concreto e do momento em que ela surge.

 IV. CONSIDERAÇÕES FINAIS

 Partilha-se da premissa, adotada por considerável parte da doutrina, de que a administração publica pode, em linhas gerais, submeter disputas relacionadas a seus contratos à arbitragem[21]. E também do entendimento de que a indisponibilidade na análise da arbitrabilidade objetiva dos conflitos envolvendo a administração pública é exceção e merece interpretação restritiva.[22]

Mesmo assim, remanesce o desafio de definir, em alguns casos em zonas cinzentas, quais são, in concreto, os conflitos relativos a direitos patrimoniais disponíveis que a administração pode ou não submeter a arbitragem.

Para esse fim, procurou-se estabelecer neste estudo algumas diretrizes para fazer essa análise casuística que se propõe, as quais se espera que sejam seguidas de muitas outras.

Certamente, não serão poucas as propostas que surgirão com esse mesmo objetivo e que se espera que sejam exploradas.

De todo modo, será sempre importante ter em mente que o interesse público (primário, composto dos interesses coletivos fundamentais em determinado ordenamento jurídico e momento histórico) é conceito indeterminado e, assim, inevitavelmente mutável[23] e que, por isso, não pode dispensar a análise casuística.

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[1] Para os fins deste artigo, abrangendo a administração pública direta e indireta, inclusive sociedades de economia mista.

[2] P. ex.: ROQUE, Andre Vasconcelos. ‘A evolução da arbitrabilidade objetiva no brasil: tendências e perspectivas’, em Revista de Arbitragem e Mediação, vol. 33, 2012, p. 301 e ss., 3ª pág: “O que se afirmou acima vale para o Estado e igualmente as suas autarquias, que também podem submeter à arbitragem litígios sobre questões que não digam respeito ao interesse público primário ou a um ato de império”. Valendo-se também dessa diferenciação para determinar a arbitrabilidade de disputas envolvendo a administração pública: FERRAZ, Rafaela. Arbitragem em litígios comerciais com a administração pública: exame a partir de principialização do direito administrativo, Porto Alegre, Sérgio Antonio Fabris Ed., 2008, p. 49-50. Para uma descrição mais aprofundada dos autores que tratam da arbitrabilidade objetiva a partir dessa diferenciação entre interesse público primário e secundário, ver OLIVEIRA, Beatriz Lancia Noronha de. A arbitragem nos contratos de parceria público-privada, Dissertação de Mestrado na Faculdade de Direito da USP, São Paulo, 2012 p. 80 e ss., esp. nota 125.

[3] FURTADO, Lucas Rocha. Curso de direito administrativo, Belo Horizonte, Ed. Fórum, 3ª ed., 2012, p. 76.

[4] Cf., p. ex., ROQUE, André Vasconcelos. ‘A evolução da arbitrabilidade…’, cit., nota n. 31, e OLIVEIRA, Beatriz Lancia Noronha de. A arbitragem nos contratos…, cit., p. 82.

[5] ALESSI, Renato. Diritto Amministrativo, Milão, Giuffré, 1949, v. 1, p. 122-124, apud – tradução livre do original em italiano por – OLIVEIRA, Beatriz Lancia Noronha de. A arbitragem nos contratos…, cit., p. 83 (“Estes interesses públicos, coletivos, de que a administração deve garantir a satisfação, não são, note-se, apenas o interesse da administração entendida como uma entidade autônoma, mas também aquele que tem sido chamado interesse público primário, formado pelo complexo de interesses individuais prevalentes em uma determinada organização jurídica da coletividade, enquanto que o interesse da entidade administrativa é simplesmente um dos interesses secundários existentes na comunidade, e que pode ser satisfeito apenas no caso de coincidência – e limites de tal coincidência – com o interesse público primário (…)”).

[6] REsp 612.439/RS, rel. Min. João Otávio de Noronha, 2ª Turma, j. 25/10/2005: “(…) quando os contratos celebrados pela empresa estatal versem sobre atividade econômica em sentido estrito – isto é, serviços públicos de natureza industrial ou atividade econômica de produção ou comercialização de bens, suscetíveis de produzir renda e lucro –, os direitos e as obrigações deles decorrentes serão transacionáveis, disponíveis e, portanto, sujeitos à arbitragem. Ressalte-se que a própria lei que dispõe acerca da arbitragem – art. 1º da Lei n. 9.307/96 – estatui que ‘as pessoas capazes de contratar poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis’. Por outro lado, quando as atividades desenvolvidas pela empresa estatal decorram do poder de império da Administração Pública e, conseqüentemente, sua consecução esteja diretamente relacionada ao interesse público primário, estarão envolvidos direitos indisponíveis e, portanto, não-sujeitos à arbitragem”.

[7] O Decreto 8.465/2015 da Presidência da República, uma vez que dispõe, por um lado, em seu art. 2º que “[i]ncluem-se entre os litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis que podem ser objeto da arbitragem de que trata este Decreto (…) questões relacionadas à recomposição do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos” e, por outro, em seu art. 6º, § 2º, inc. II (ainda que em referência específica a contratos de concessão, arrendamento e autorização), que “[a] cláusula compromissória de arbitragem, quando estipulada (…) excluirá de sua abrangência as questões relacionadas à recomposição do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos, sem prejuízo de posterior celebração de compromisso arbitral para a solução de litígios dessa natureza”, gerando ao menos boa medida de incerteza quanto à arbitrabilidade de tais questões.

[8] Em 2012, o TCU determinou a inarbitrabilidade de questões econômico-financeiras de contrato de concessão da Rodovia BR 101/ES/BA, essencialmente porque (i) envolviam a fixação de tarifas, que não poderia ser submetida à arbitragem em razão da irrenunciabilidade do poder tarifário e (ii) se referiam a concessão de serviço público e, por essa especificidade, seriam indisponíveis, cf. Acórdão 2573/2012, Plenário, rel. Raimundo Carneiro, 26/9/2012 (“Como da prestação do serviço público decorre a cobrança de tarifas públicas, Joana Paula Batista entende que, “em face da irrenunciabilidade do poder tarifário, a fixação de tarifas não poderá se submeter à arbitragem, forma alternativa de solução de disputas positivada pela Lei n. 9.307/1996. (…) No caso específico de contratos de concessão de serviços públicos, as questões econômico-financeiras são de interesse público e, por conseguinte, são indisponíveis a juízo arbitral em litígios administrativos”).

[9] Em 2011, menos de um ano antes da referida decisão do TCU, o STJ havia decidido expressamente pela arbitrabilidade de conflito envolvendo o equilíbrio econômico-financeiro de contrato administrativo para a exploração dos serviços de gás canalizado (ainda que sob a premissa de que o “contrato celebrado entre as partes não envolveria a prestação de serviço público”), no julgamento do REsp 904.813, 3ª Turma, rel. Min. Nancy Andrighi, j. 20/10/2011 (“Especificamente, no âmbito do Poder Público, há ainda a questão da impossibilidade de instituição do juízo arbitral para dirimir determinadas controvérsias que envolvem direitos indisponíveis, sendo necessária, portanto, a atuação da jurisdição estatal, cuja competência será fixada pela cláusula de foro prevista obrigatoriamente nos contratos administrativos. Esse, contudo, não é o caso dos autos, cujo objeto da arbitragem limita-se à discussão acerca da manutenção do equilíbrio econômico financeiro do contrato, ou seja, não envolve direitos indisponíveis. Com efeito, a controvérsia estabelecida entre as partes é de caráter eminentemente patrimonial e disponível, tanto assim que as partes poderiam tê-la solucionado diretamente, sem intervenção tanto da jurisdição estatal, como do juízo arbitral”).

[10] Essa premissa é bem esclarecida por JUSTEN FILHO ao tratar do conceito de interesse público (primário) e destacar a “impossibilidade de adotar uma solução predeterminada e abstrata para eventuais litígios”, sendo “indispensável examinar, em face do caso concreto, o regime jurídico aplicável” (JUSTEN FILHO, Marçal. Curso…, cit., p. 123.).

[11] Idem, ibidem (“Poderá ser escolhido o interesse do Estado, da maioria das pessoas ou da sociedade em face das circunstâncias, desde que essa seja a solução mais compatível com o ordenamento jurídico e represente o modo mais adequado e satisfatório da realização dos direitos fundamentais protegidos constitucionalmente”).

[12] Nomenclatura sustentada por JUSTEN FILHO, essencialmente por existirem “interesses coletivos múltiplos, distintos, contrapostos – todos eles merecendo tutela por parte do direito”, e porque, sendo assim, “o critério da supremacia do interesse público apresenta utilidade reduzida, uma vez que não há um interesse único a ser reputado como supremo”. Com base nessas premissas, o autor arremata que “a determinação do interesse a prevalecer e a extensão dessa prevalência dependem sempre do caso concreto” (JUSTEN FILHO, Marçal. Curso…, cit., p. 124).

[13] Como, p. ex., GAMA JR., cuja lição merece reprodução por muito bem sintetizar o ponto: “O intérprete não pode se esquivar das especificidades de cada caso concreto, impondo a priori uma única em invariável relação de prevalência do interesse público. Tal atitude distancia-se do princípio da proporcionalidade, de imperativa observância” (GAMA JR., Lauro. ‘Sinal verde…, cit., p. 141). No mesmo sentido, reconhecendo a necessidade de análise caso a caso na determinação da arbitrabilidade de disputas envolvendo a administração pública: SALLA, Ricardo Medina. Arbitragem e administração…, cit., p. 40; e FERRAZ, Rafaela. Arbitragem em litígios, cit., p. 50.

[14] Cf. SALLES, Carlos Alberto de. ‘Processo civil e interesse público’, em COSTA, Suzana Henriques da; GRINOVER, Ada Pelegrini; WATANABE, Kazuo. O processo para a solução de conflitos de interesse público, Salvador, JusPODIVM, 2017, p. 216 (“É necessária, dessa forma, a adoção de critérios substanciais para definir interesse público, tomando-se em consideração aqueles parâmetros mínimos pelos quais a convivência social é possível em um regime de liberdade, permitindo conciliar interesses particulares, de indivíduos e grupos, com aqueles pertencentes a toda a coletividade”). Ainda, o autor pondera que “seria possível coerentemente definir o interesse público em termos substanciais, por exemplo, resumindo-se os objetivos sociais sob a rubrica da eficiência e equidade” (Idem, ibidem, na nota de rodapé n. 75, em ref. à doutrina de WEINSBROAD, Burton A.).

[15] JUSTEN FILHO, Marçal. Curso…, cit., p. 123 (“(…) o ponto fundamental é a configuração de um direito fundamental de natureza indisponível. O núcleo do direito administrativo não reside no interesse público, mas na promoção de direitos fundamentais indisponíveis”).

[16] Para os fins deste estudo, os interesses coletivos são representativos do que outros chamam de interesse público e baseados essencialmente nos direitos fundamentais indisponíveis como critério substancial principal, como esclarecido acima (IV supra).

[17] LEMES, Selma M. Ferreira. ‘Arbitragem na concessão…, cit., p. 9. No mesmo sentido, no âmbito das parecerias público-privadas: TALAMINI, Eduardo. ‘Arbitragem e parceria…’, cit., p. 346.

[18] Reconhecido como tal, p. ex., em STF, RE 603575, rel. Min. Eros Grau, j. 20/4/2010.

[19] Como se vê, p. ex., em JÚNIOR, Marcos de Oliveira Vasconcelos.  A terceirização na administração pública e os serviços públicos de saúde, CONPEDI, sem data, disponível em http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=29c0605a3bab4229, acesso em 16/6/2019.

[20] Tal como reconhecido, p. ex., em STF, RE 820910, rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. em 26/8/2014.

[21] Nesse sentido, por todos: CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e processo: um comentário à Lei nº 9.307/96, 3ª ed., Atlas, 2009, p. 45 e ss.

[22] Cf. MARTINS, Pedro Batista. ‘Arbitrabilidade objetiva…’, cit., p. 92: “Assim como acontece com o direito administrativo, direito de exceção frente ao direito privado, os direitos patrimoniais indisponíveis são de natureza excepcional. Por se tratar de regra de exceção deve ser interpretada estritamente”.

[23] Nesse sentido. HORBACH, Carlos Bastide. Prefácio em PARADA, André Luis Nascimento. Arbitragem nos contratos…, cit., p. 7 (“a administração é uma eterna mutação, um eterno devir. Isso demonstra que, normatizando realidade tão instável, deve esse ramo da ciência do direito estar constantemente aberto ao novo, às novas soluções jurídicas que tenham a potencialidade de satisfazer, de modo mais efetivo e eficiente, o interesse público”).