Breves notas sobre a arbitragem e o litisconsórcio passivo facultativo: análise do acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo na apelação nº 1005485-36.2015.8.26.0196

Carlos Manoel Holanda Costa[1]

  1. Introdução

            Este artigo analisa criticamente acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (“TJSP”), prolatado em 22 de fevereiro de 2018, que estendeu cláusula compromissória arbitral a terceiro, sob o fundamento de que ele formava um litisconsórcio passivo facultativo com a parte signatária e a fim de evitar o risco de decisões conflitantes.

  1. Contextualização do caso

            A Kuge Consultoria Empresarial Ltda., ME (“Kuge”) é titular da marca URGH, relacionada a produtos de skateboard. Em 2013, a Kuge celebrou instrumento particular de licença de uso de marca (“Contrato”) com a W.R. Indústria de Calçados Ltda., ME (“W.R.”), cujo objeto era a licença para o uso da marca URGH, mediante o pagamento de royalties.[2]

            Dado que a W.R. não realizou o pagamento dos royalties, a Kuge ajuizou ação judicial de abstenção de uso de marcas cumulada com perdas e danos (“Demanda”) contra a W.R. e o Sr. Richard Garcia (“Sr. Richard”).[3]

            O Sr. Richard foi incluído no polo passivo da Demanda sob o fundamento de que seria sócio oculto da W.R. e devedor solidário (art. 993, parágrafo único, Código Civil). Segundo a Kuge, embora o Sr. Richard não figurasse como sócio no contrato social da W.R., ele enviava e-mails em nome da W.R. e negociou as cláusulas do Contrato com a Kuge.

            Em agosto de 2017, foi prolatada sentença extinguindo o processo sem resolução do mérito, em virtude da existência de cláusula compromissória arbitral no Contrato. A Kuge apresentou apelação defendendo que o Sr. Richard não era signatário da referida cláusula, razão pela qual a Demanda deveria ser processada no Poder Judiciário.

            Em fevereiro de 2018, o TJSP proferiu acórdão negando provimento à apelação.[4] Segundo o acórdão, apesar de ser teoricamente possível iniciar um procedimento arbitral contra a W.R. e ajuizar uma demanda judicial contra o Sr. Richard, a Kuge deveria propor uma demanda arbitral contra ambos os réus, para afastar o risco de decisões conflitantes.

  • Arbitragem e litisconsórcio passivo facultativo

            Há litisconsórcio facultativo quando dois ou mais sujeitos podem figurar no mesmo polo processual, mas não necessariamente devem (art. 113, Código de Processo Civil – “CPC”). Ou seja, a presença dos sujeitos em um dos polos não é requisito de validade para o regular desenvolvimento do processo.[5]

            Por sua vez, no litisconsórcio necessário (art. 114, CPC), dois ou mais sujeitos devem necessariamente figurar em um dos polos processuais em conjunto, sob pena de o processo não se desenvolver validamente.[6]

            Diante de uma situação de litisconsórcio passivo necessário em que um dos réus é signatário de uma cláusula compromissória arbitral e o outro não, a jurisdição arbitral deve ser afastada. Isso porque a presença de ambos os réus no polo passivo é imprescindível para o regular desenvolvimento do processo.

            Como um deles não concordou com a cláusula compromissória arbitral e não pode ser compelido a litigar em arbitragem contra a sua vontade, tendo em vista a importância do consentimento para o instituto[7], somente é possível ajuizar uma demanda judicial contra ambos os réus.[8]

            O raciocínio é diferente no caso de litisconsórcio passivo facultativo. Na medida em que essa modalidade não exige que os litisconsortes figurem no mesmo processo, havendo dois litisconsortes e tendo apenas um deles assinado a cláusula compromissória arbitral, é possível que seja proposta uma demanda arbitral exclusivamente contra o signatário. Isso não afetará a validade do processo arbitral. Ademais, o outro litisconsorte, que não concordou com a convenção de arbitragem, poderá ser demandado no Poder Judiciário.

  1. Análise do acórdão

            No caso concreto, a alegação da Kuge parte da premissa de que a W.R. e o Sr. Richard são devedores solidários. A hipótese de solidariedade passiva é um caso de litisconsórcio passivo facultativo, pois o credor pode exigir a dívida de cada um dos devedores independentemente (art. 275, Código Civil).[9]

            Em vez de ajuizar uma demanda contra cada réu, a Kuge incluiu a W.R. e o Sr. Richard no polo passivo da Demanda.

            No entanto, a cláusula compromissória arbitral somente pode ser afastada diante de um caso de litisconsórcio passivo necessário, razão pela qual a Kuge deveria observar a cláusula compromissória arbitral prevista no Contrato. Portanto, caberia à Kuge iniciar uma arbitragem contra a W.R.

            Por outro lado, para processar o Sr. Richard, a Kuge necessariamente deveria propor uma demanda judicial, dado que ele não era signatário da cláusula compromissória arbitral do Contrato.

            Sendo assim, o acórdão do TJSP acertou ao extinguir o processo sem resolução do mérito com relação à W.R. Todavia, equivocou-se ao extinguir o processo com relação ao Sr. Richard, visto que partiu da premissa de que a Kuge poderia iniciar uma arbitragem contra o Sr. Richard. Tal premissa não é correta, pois o Sr. Richard não era signatário da cláusula compromissória arbitral.

            Finalmente, o argumento do TJSP de que o julgamento da demanda contra ambos os réus pelo tribunal arbitral seria relevante para evitar a prolação de decisões conflitantes não encontra embasamento jurídico.

            No caso de litisconsórcio passivo facultativo, o risco de decisões conflitantes, embora indesejável, pode existir, caso as demandas propostas contra os litisconsortes tramitem em juízos distintos e seja impossível reuni-las.[10]

            Isso, contudo, jamais poderia servir de justificativa para obrigar uma parte não signatária da cláusula compromissória arbitral a litigar em arbitragem. Sendo a arbitragem um negócio jurídico consensual[11], o consentimento de um sujeito, ainda que tácito (art. 107, Código Civil), é imprescindível para que seja possível forçá-lo a demandar em arbitragem.

  1. Conclusão

            Neste artigo, demonstrou-se que o acórdão do TJSP da apelação nº 1005485-36.2014.8.26.0196 está parcialmente equivocado, pois a existência de litisconsórcio passivo facultativo (art. 113, CPC) entre o signatário de uma cláusula compromissória arbitral e um terceiro não é suficiente para sujeitar o terceiro à arbitragem, independentemente do seu consentimento.

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[1] Mestrando em Direito dos Negócios pela FGV-SP. Graduado pela FGV-SP. Advogado do E.Munhoz Advogados.

[2] Os fatos do caso analisado foram extraídos das petições e das decisões dos autos do processo nº 1005485-36.2015.8.26.0196, que é público e tramita eletronicamente.

[3] A demanda foi distribuída à 4ª Vara Cível do Foro de Franca, em São Paulo.

[4] O acórdão foi relatado pelo Des. Carlos Dias Motta, à época integrante da 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial.

[5] Por exemplo, um ou mais condôminos podem ajuizar demanda para reivindicar o bem comum (art. 1.314, Código Civil).

[6] Por exemplo, há litisconsórcio necessário na demanda anulatória de relação contratual ajuizada pelo vendedor de um bem contra dois compradores.

[7] “Demonstra-se, assim, que, no sistema da Lei de Arbitragem brasileira, não se pode compelir qualquer pessoa, física ou jurídica, a submeter-se ao juízo arbitral contra a sua vontade ou mesmo na ausência de manifestação explícita de sua parte” (PELA, Juliana Krueger. Notas sobre a eficácia da cláusula compromissória estatutária. In. RDMIEF. São Paulo, Malheiros, 2002, v. 126, pp. 129-140).

[8] “Se, contudo, o terceiro, que se deseja incluir no processo, não firmou o ajuste, sua inserção no litisconsórcio, ainda que necessário, somente se tornará possível se ele consentir em aderir ao compromisso. Havendo, pois, recusa de sua parte o árbitro não terá força para submetê-lo à relação processual. Se o caso for de litisconsórcio facultativo, o procedimento da arbitragem terá de prosseguir só com as partes vinculadas à convenção arbitral. Se for necessário o litisconsórcio, ‘só restará ao árbitro encerrar o procedimento sem julgamento de mérito, por falta de integração da convenção de arbitragem’. Proferirá sentença terminativa na esfera arbitral, para que a lide possa ser resolvida pelo Poder Judiciário (…). Da recusa do litisconsorte necessário a aderir à arbitragem, nascerá, portanto, para o promovente, o poder de instaurar o processo comum na justiça oficial, sem que aos demais participantes da convenção seja dado alegar a exceção de compromisso prevista no art. 267, VII, do CPC (LGL\1973\5)” (THEODORO JÚNIOR, Humberto. Arbitragem e terceiros: litisconsórcio fora do pacto arbitral – outras intervenções de terceiros. RDB, v. 14, 2001, pp. 375-380).

[9] PACHECO E SILVA, Domício Whateley. A solidariedade no direito das obrigações. Dissertação de Mestrado. Orientador: Giovanni Ettore Nanni. PUC-SP, 2019, p. 441.

[10] Em regra, as demandas contra litisconsortes passivos facultativos devem ser reunidas por conexão (art. 55, CPC). Porém pode haver casos em que a conexão não é possível e as demandas devem caminhar independentemente, em juízos distintos, havendo risco de decisões contraditórios. Por exemplo, se um dos litisconsortes for uma empresa pública federal, o processo ajuizado contra ele deve tramitar na a Justiça Federal (art. 109, I, Constituição Federal). Nesse caso, mesmo havendo demanda preexistente contra o outro litisconsorte passivo facultativo na Justiça Comum, a reunião não seria possível.

[11] CARMONA, Carlos Alberto. Contrato de Joint Venture. Contratos-satélites que absorvem as previsões constantes do contrato-base. Revogação tácita e revogação expressa da cláusula compromissória. Manifestação de vontade no sentido de restringir os limites da cláusula compromissória. Autonomia de Vontade. Impossibilidade de homologar sentença arbitral estrangeira. Art. 38, II, da Lei da Arbitragem. RAM, São Paulo, nº 19, 2008, p. 156.