Provas obtidas em procedimentos de Discovery nos Estados Unidos podem ser utilizadas em arbitragens no Brasil? Um exame sobre seu cabimento e admissibilidade.

Bruno Barreto de A. Teixeira[1]

Este artigo examina a possibilidade de se obter provas em procedimentos de discovery perante as cortes dos Estados Unidos (EUA) para uso em arbitragens no Brasil. Debateremos o uso do procedimento de discovery como ferramenta de cooperação jurídica internacional, bem como a extensão da regra, conforme interpretada pelas Cortes americanas. Trataremos, também, dos critérios para avaliação, pelo árbitro brasileiro, da prova produzida em discovery.

O procedimento de discovery serve para obtenção de provas antes de um julgamento. Durante o discovery, uma parte requer à Corte a produção de prova detida ou sob o controle da outra. O procedimento de discovery se desenvolveu dentro dos processos nas Courts of Chancery, na Inglaterra – nestas ações, a Corte permitia ao autor fazer questionamentos ao réu e obrigar o segundo a produzir prova mesmo em seu desfavor.[2]

As regras de discovery estão previstas em diversos países.[3] Nos Estados Unidos – jurisdição onde o instituto tem maior relevância –, os códigos processuais estaduais possuem, quase todos, regras de discovery. Muitos Estados adotaram o Uniform Interstate Depositions and Discovery Act, uma Lei-modelo elaborada pela Uniform Law Commission. Em se tratando, contudo, de procedimentos envolvendo partes estrangeiras, as regras relevantes são as Federal Rules of Civil Procedure (“FRCP”), que governam o procedimento judicial nas Cortes federais, e o Título 28 do United States Code, que regula o sistema judicial federal.

As FRCP governam o discovery no Título V. Ali estão contidas as regras relacionadas (i) ao dever de revelar a prova; (ii) às depositions – depoimentos concedidos por potenciais testemunhas antes da audiência; (iii) aos interrogatórios para as partes, também anterior à audiência; (iv) à produção de documentos; (v) aos exames físicos e médicos; bem como (vi) aos pedidos de admissão; e (vii) às sanções em caso de descumprimento das ordens de discovery.

Já o Título 28 do United States Code regula o funcionamento do sistema judicial federal americano. Dentre as regras sobre funcionamento das Cortes, de jurisdição e cumprimento e execução de sentenças judiciais, há diversas regras processuais referentes ao funcionamento da fase instrutória, inclusive sobre discovery, contida, especialmente, na Seção 1782.

A  Seção 1782 do Título 28 do United States Code prescreve o que segue:

“The district court of the district in which a person resides or is found may order him to give his testimony or statement or to produce a document or other thing for use in a proceeding in a foreign or international tribunal, including criminal investigations conducted before formal accusation. The order may be made pursuant to a letter rogatory issued, or request made, by a foreign or international tribunal or upon the application of any interested person and may direct that the testimony or statement be given, or the document or other thing be produced, before a person appointed by the court. By virtue of his appointment, the person appointed has power to administer any necessary oath and take the testimony or statement. The order may prescribe the practice and procedure, which may be in whole or part the practice and procedure of the foreign country or the international tribunal, for taking the testimony or statement or producing the document or other thing. To the extent that the order does not prescribe otherwise, the testimony or statement shall be taken, and the document or other thing produced, in accordance with the Federal Rules of Civil Procedure.” (grifos nossos)

A grande controvérsia sobre a Seção 1782 recai sobre a possibilidade de seu uso para obter provas para uso em tribunais arbitrais internacionais. Dois precedentes – um da United States Court of Appeals for the Second Circuit (“2d. Cir.”) e um da Suprema Corte dos Estados Unidos (“SCOTUS”) – são essenciais para se compreender o status atual da jurisprudência.

O leading case sobre a matéria é o caso NBC v. Bear Stearns.[4] Neste caso, a NBC – em meio a uma disputa com a Bear Sterns sujeita à arbitragem administrada pela Corte Internacional de Arbitragem da Câmara de Comércio Internacional (“CCI”) com sede na Cidade do México – pleiteou discovery de provas em posse de terceiros baseados em Nova York para uso na arbitragem. O 2d. Cir. decidiu que o tribunal arbitral não se qualificaria no conceito de “foreign or international tribunal”. Segundo o 2d. Cir., um relatório da comissão do Congresso americano que redigiu a Seção 1782 em 1963 afirma que o legislador entendia, à época, que o termo “tribunal” se estenderia apenas para “entidades governamentais”.[5]

A questão foi posteriormente tratada pela SCOTUS em Intel Corp. v. Advanced Micro Devices, Inc.[6] Neste caso, a AMD ingressou com uma reclamação de conduta antitruste contra a Intel perante a Diretoria Geral para Competição da Comissão Europeia. Para fundamentar seus argumentos, a AMD pediu à District Court for the Northern District of California que a Intel produzisse determinados documentos. A SCOTUS permitiu à AMD que obtivesse a prova pedida em discovery.

O caso não envolve arbitragem, mas é relevante para nossa análise. Primeiro, o pleito da AMD era de usar o produto do discovery perante um órgão da Comissão Europeia, que também não tem natureza de “entidade governamental”, no sentido estrito previsto em NBC v. Bear Sterns. Segundo, a SCOTUS decidiu, com base na orientação dada pelo Congresso americano para a Comission on International Rules of Judicial Procedure, formada em 1958, que esta recomendasse regras para assistência à Cortes estrangeiras e “quase-judicial agencies”. O mesmo documento indicaria, ainda, que o termo “tribunal” deveria incluir Ministérios Públicos, tribunais administrativos e tribunais arbitrais.

Desde Intel, boa parte da doutrina defende a revisão do entendimento do 2d. cir. quanto ao uso da Seção 1782 em casos envolvendo arbitragem.[7] Entretanto, a corte vinha adotando o mesmo posicionamento de NBC v. Bear Sterns em casos mais recentes.[8]

Agora, parece que o 2d. cir. está disposto a reverter sua posição. Tanto em In re Guo[9] quanto em In re Fund for the Protection of Investor Rights in Foreign States v. AlixPartners,[10] a corte, aplicando um teste de funcionalidade, entendeu que tribunais de arbitragem de investimento se qualificariam para aplicação da Seção 1782.

O tema também se encontra sob revisão da SCOTUS. Em 22.03.2021, a corte suprema concedeu certiorari para examinar a decisão proferida pela United States Court of Appeals for the Seventh Circuit (“7th. cir.”) no caso Servotronics, Inc. v. Rolls-Royce PLC. Naquela decisão, o 7th. cir. entendeu que um tribunal arbitral não se qualificaria como “foreign or international tribunal”. Caberá à SCOTUS, agora, resolver o dissídio jurisprudencial.

Ultrapassado o debate sobre a admissibilidade do uso da Seção 1782 como instrumento de cooperação jurídica entre cortes estadunidenses e tribunais arbitrais estrangeiros, deve-se perquirir o regime de provas na arbitragem, a fim de verificar quais os critérios que devem ser adotados por tribunais arbitrais brasileiros para admitir ou valorar tais provas.

A legislação brasileira não possui regra específica sobre o tema. O artigo 22 da Lei de Arbitragem apenas afirma, de forma genérica, os poderes instrutórios dos árbitros.[11] Também não se pode recorrer às normas do Processo Civil brasileiro – como se sabe, o consenso na doutrina dá conta de que as regras do CPC não se aplicam à arbitragem.[12] Por isso, não seria possível a utilização da regra contida no artigo 372 do CPC,[13] por exemplo, em arbitragens sujeitas à Lei brasileira.

Onde os árbitros poderão encontrar, então, critérios para admissibilidade e valoração da prova obtida em discovery?

Uma solução para este enigma está na legislação não-estatal. É comum, no plano internacional, que entidades relevantes, como a International Bar Association, editem regras que podem guiar árbitros, partes e advogados na condução de procedimentos arbitrais. Comumente conhecidas como soft law, estas regras não-estatais têm duas funções: (i) servir como guia das melhores práticas das arbitragens internacionais; e (ii) funcionar como regras aplicáveis ao procedimento arbitral, caso haja consentimento das partes.

No que tange às regras de produção de provas, as mais relevantes no plano da arbitragem internacional são as Regras da IBA. Elas preveem que a prova produzida seja admissível na arbitragem se relevante e material para o caso.

Igualmente, deve o tribunal determinar seu peso para o deslinde da controvérsia.[14] Para fazê-lo, o tribunal deve averiguar se uma das objeções previstas no artigo 9(2)[15] são aplicáveis – se forem, deve o tribunal inadmitir a prova. Várias destas objeções nos parecem aplicáveis à prova produzida em discovery, como por exemplo, materialidade, relevância, privilégio legal, confidencialidade, sensibilidade política e economia processual.

Uma vez admitida a prova, o tribunal tem ampla discricionariedade para sopesá-la atribuindo o valor que entender cabível. Trata-se de aplicação prática do livre convencimento – um dos princípios fundamentais da arbitragem, nos termos do artigo 21, §2º, Lei de Arbitragem.[16]

Portanto, podem os árbitros utilizar os instrumentos de direito não-estatal, se apoiando nos critérios ali estipulados como guia para a admissibilidade e valoração da prova produzida em discovery. Importante notar, contudo, que esses instrumentos não se aplicam automaticamente; afinal, não fazem parte de um regime jurídico nacional ou internacional aplicável, de plano, à disputa. Por isso, os árbitros devem sempre obter o consentimento das partes para seu uso.

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[1] Doutorando em Direito Internacional pela Universidade de São Paulo (USP). Mestre em Direito (LL.M.) pela New York University School of Law (NYU). Coordenador adjunto do Grupo de Estudos em Arbitragem e Direito do Comércio Internacional da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Advogado no Rio de Janeiro.

[2] GOLDSTEIN, Alan K. A Short History of Discovery. Anglo-American Law Review. Vol. 10, 1981, pp. 257–270.

[3] Cf., e.g., o Civil Procedure Rules (CPR) do Reino Unido e o Supreme Court of Judicature Act de Cingapura.

[4] National Broadcasting Co. v. Bear Stearns & Co., 165 F.3d 184, 190–91 (2d Cir. 1999).

[5] CHAIR, Robert H.; WHITTAKER, Janet M. 28 U.S.C. § 1782 as a Means of Obtaining Discovery in Aid of International Commercial Arbitration—Applicability and Best Practices. The Committee on International Commercial Disputes, pp. 17-18.

[6] Intel Corp. v. Advanced Micro Devices, Inc., 542 U.S. 241 (2004)

[7] SHERMAN, Julia. Section 1782 Discovery: Recent Decisions Highlight Splits in the Second Circuit. Disponível em http://arbitrationblog.kluwerarbitration.com/2019/07/10/section-1782-discovery-recent-decisions-highlight-splits-in-the-second-circuit/?print=print. Acesso em 20.08.2021.

[8] In re Kleimar N.V. 220 F. Supp. 3d 517 (S.D.N.Y. 2016); In Re: Application of The Children’s Investment Fund Foundation (UK), Sir Christopher Hohn, And Axon Partners, LP For An Order To Take Discovery Pursuant to 28 U.S.C. 1782, No. 1:2018mc00104 – Document 55 (S.D.N.Y. 2019).

[9] In re Application of Hanwei Guo, 965 F.3d 96 (2d Cir. 2020).

[10] In re Fund for Prot. of Inv. Rts. In Foreign States v. AlixPartners, LLP, — F.4th —, No. 20-2653-cv, 2021 WL 2963980 (2d Cir. July 15, 2021).

[11] Art. 22. Poderá o árbitro ou o tribunal arbitral tomar o depoimento das partes, ouvir testemunhas e determinar a realização de perícias ou outras provas que julgar necessárias, mediante requerimento das partes ou de ofício.

[12] Neste sentido, cf. BATISTA MARTINS, Pedro A. Apontamentos sobre a Lei de Arbitragem. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 239; CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e Processo: um comentário à Lei nº. 9.307/96. 3ª Ed. São Paulo: Atlas, 2009, p. 292; MAGALHÃES, José Carlos de. Arbitragem e Processo. Revista do Advogado. Ano 26, nº. 87. São Paulo: AASP, 2006, p. 63. LEE, João Bosco. A especificidade da Arbitragem Comercial Internacional. In.: CASELLA, Paulo Borba (coord.) Arbitragem – lei brasileira e praxe internacional. São Paulo: LTR, 1999, p. 183. MONTORO, Marcos André Franco. Flexibilidade no Procedimento Arbitral. São Paulo: Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2010, pp. 115-118. Disponível em http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/2/2137/tde-16082011-161411/pt-br.php. Acesso em 20.08.2021; NUNES, Thiago Marinho. Flexibilidade do Procedimento Arbitral. Revista Brasileira de Arbitragem, Ano X, nº. 39, p. 237; e, por fim, WEBER, Ana Carolina. Let’s Remember: In Brazil, the Civil Procedure Code is Not Automatically Applicable to Arbitral Proceedings. Disponível em http://kluwerarbitrationblog.com/2016/12/05/lets-remember-in-brazil-the-civil-procedure-code-is-not-automatically-applicable-to-arbitral-proceedings/. Acesso em 20.08.2021

[13]  Art. 372. O juiz poderá admitir a utilização de prova produzida em outro processo, atribuindo-lhe o valor que considerar adequado, observado o contraditório.

[14] Art. 9(1). The Arbitral Tribunal shall determine the admissibility, relevance, materiality and weight of evidence.

[15] Art. 9(2). The Arbitral Tribunal shall, at the request of a Party or on its own motion, exclude from evidence or production any Document, statement, oral testimony or inspection for any of the following reasons: (a) lack of sufficient relevance to the case or materiality to its outcome; (b) legal impediment or privilege under the legal or ethical rules determined by the Arbitral Tribunal to be applicable; (c) unreasonable burden to produce the requested evidence; (d) loss or destruction of the Document that has been shown with reasonable likelihood to have occurred; (e) grounds of commercial or technical confidentiality that the Arbitral Tribunal determines to be compelling; (f) grounds of special political or institutional sensitivity (including evidence that has been classified as secret by a government or a public international institution) that the Arbitral Tribunal determines to be compelling; or (g) considerations of procedural economy, proportionality, fairness or equality of the Parties that the Arbitral Tribunal determines to be compelling.

[16] Art. 21, §2º. Serão, sempre, respeitados no procedimento arbitral os princípios do contraditório, da igualdade das partes, da imparcialidade do árbitro e de seu livre convencimento.