Saga Belokon: um comentário à decisão da Cour de Cassation francesa, de 23 de março de 2022, Pourvoi No. 17-17.981

Júlia Thedy[1]

Lara Yokota[2]

Introdução

Em uma decisão de 23 de março de 2022[3], a Cour de cassation francesa (“Suprema Corte“) confirmou a decisão da Cour d’appel de Paris[4] (“Corte de apelação“) de anular uma sentença arbitral (“Sentença“), que havia condenado a República Quirguiz (“Quirguistão“) ao pagamento de aproximadamente quinze milhões de doláres ao investidor Valeri Belokon (“Sr. Belokon“).

A Suprema Corte entendeu que a Corte de apelação não havia excedido os seus poderes ao julgar que a Sentença violou a ordem pública internacional ao permitir que o Sr. Belokon se beneficiasse dos frutos do crime de lavagem de dinheiro.

Essa decisão já era esperada há alguns anos pela comunidade arbitralista francesa, porque traz esclarecimentos importantes sobre o controle do respeito à ordem pública internacional.

Antecedentes jurisprudenciais

Historicamente, a jurisprudência francesa – seja da Suprema Corte[5], seja da Corte de apelação[6] – adotou uma postura chamada ‘minimalista‘ ao analisar pedidos de anulação (e de exequatur) de sentenças arbitrais. Tal postura reflete uma abordagem não-intervencionista e pró-arbitragem. Não é por menos que, em 2004, a Corte de apelação concluiu que a violação da ordem pública internacional[7] deveria ser ‘flagrante, efetiva e concreta‘ para ensejar a anulação de uma sentença arbitral.[8]

Todavia, essa linha jurisprudencial não foi bem aceita pela doutrina francesa. Segundo as críticas feitas, a escolha de sacrificar a proteção da ordem pública internacional em prol da prevalência de sentenças arbitrais permitia que as partes se beneficiassem de crimes como corrupção e lavagem de dinheiro – o que contrariaria os valores defendidos pela França.[9]

Com o tempo, a Corte de apelação modificou o seu entendimento inicial, ampliando o poder do juiz francês em relação ao controle da ordem pública internacional, o que foi interpretado como uma adoção da abordagem dita ‘maximalista‘.[10] Por exemplo, o termo ‘flagrante[11] ou a exigência do caráter ‘concreto[12] da violação da ordem pública internacional foram abandonados em diferentes ocasiões.

Nos últimos anos, a Corte de apelação tem se posicionado no sentido de que a violação deveria ser ‘manifesta, efetiva e concreta‘ para ensejar anulação[13] ou impedir o exequatur da sentença.[14] Tendo em vista que o adjetivo ‘manifesto‘ pode ser considerado como sinônimo de ‘flagrante‘, muitos se indagaram sobre o grau do controle exercido pelos tribunais franceses.[15]

Afastando-se da abordagem ‘minimalista’ inicialmente adotada, as recentes decisões da Corte de apelação demonstram claramente a disposição dos juízes franceses para aplicar um controle pleno ou completo da sentença, especialmente na presença de alegações de violação da ordem pública internacional. Restava então saber se a Suprema Corte aprovaria a postura empregada pelos tribunais inferiores, uniformizando o posicionamento dos tribunais franceses sobre a matéria.

Caso Belokon: resumo

A disputa em comento tem origem na expropriação do banco quirguiz Manas Bank, adquirido pelo Sr. Belokon em 2007. No contexto de tensões políticas, o Banco Nacional da República Quirguiz determinou que diversos bancos, incluindo o Manas Bank, fossem postos sob administração provisória por um período inicial de seis meses. No caso do Manas Bank, essa decisão foi posteriormente renovada em outubro de 2010. Os bens do Manas Bank também foram apreendidos e, em julho de 2015, o banco foi declarado insolvente.

Após a insolvência do Manas Bank, o Sr. Belokon iniciou uma arbitragem ad hoc segundo as regras do Regulamento de Arbitragem de 1976 da Comissão das Nações Unidas para o Direito do Comércio Internacional, alegando violações ao Tratado Bilateral de Investimento concluído em 2008 pela Letônia e o Quirguistão (“TBI“).

Em 24 de outubro de 2014, o tribunal arbitral proferiu uma sentença favorável ao Sr. Belokon, rejeitando as alegações do Quirguistão de que o banco objeto da disputa estava envolvido em práticas de lavagem de dinheiro. Em síntese, os árbitros entenderam que (i) o Manas Bank havia sido alvo de uma expropriação dissimulada, sem um objetivo de utilidade pública; e (ii) o Quirguistão havia violado a norma de tratamento justo e equitativo previsto pelo TBI.[16]

Em 22 de janeiro de 2015, o Quirguistão pediu a anulação da sentença perante a Corte de apelação, sustentando, no que interessa ao presente comentário, que o reconhecimento de uma sentença contrária ao objetivo de luta contra a lavagem de dinheiro violaria a ordem pública internacional.

Como já comentado por outros autores[17], a Corte considerou que havia indícios graves e precisos de que o Manas Bank tinha sido adquirido pelo Sr. Belokon para desenvolver atividades de lavagem de dinheiro[18]. Ao reconhecer tais indícios, os juízes consideraram que a execução da Sentença permitiria que o Sr. Belokon se beneficiasse dos produtos de um crime, o que violaria a ordem pública internacional de maneira manifesta, efetiva e concreta. A Sentença deveria, portanto, ser anulada.

Posteriormente, o Sr. Belokon recorreu à Suprema Corte alegando que a Corte de apelação havia excedido seus poderes previstos no artigo 1.520-5 do Código de Processo Civil francês[19] ao reexaminar o mérito da Sentença e reanalisar os fatos concernentes à disputa.

Em uma decisão de 23 de março de 2022, a Suprema Corte confirmou que a luta contra a lavagem de dinheiro é objeto de amplo consenso internacional, conforme evidenciado pela Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção de 2003 e, portanto, está incluída nos princípios que fazem parte da ordem pública internacional.

A Suprema Corte reconheceu, ainda, que os tribunais franceses possuem ampla discricionariedade para determinar o efeito que o reconhecimento de uma sentença arbitral pode ter no ordenamento jurídico francês. Para este fim, os tribunais não estão vinculados às provas ou aos argumentos apresentados no procedimento arbitral e/ou às conclusões do tribunal arbitral.

Conclusões

Tendo em vista as conclusões da Corte de apelação de que o reconhecimento da Sentença permitiria que o Sr. Belokon se beneficiasse de atividades suspeitas de ilegalidade, o que resultaria em uma grave violação da ordem pública internacional, a Suprema Corte manteve a decisão de anular a Sentença. Além disso, a Suprema Corte confirmou que os juízes de anulação (ou do exequatur) devem adotar uma abordagem dita ‘maximalista‘ ao analisar o respeito das sentenças arbitrais à ordem pública internacional.

É importante ressaltar, ademais, que a decisão da Suprema Corte afirma que a revisão dos fatos subjacentes à alegação de violação de ordem pública internacional pelos tribunais não é uma revisão substantiva das conclusões do tribunal arbitral, mas apenas uma revisão da conformidade da sentença aos princípios da ordem pública internacional.

De maneira geral, a decisão da Suprema Corte no caso Belokon tem o mérito de confirmar a solução ‘maximalista’ que vem sendo adotada pela Corte de apelação nos últimos anos, clarificando o caminho escolhido pela jurisprudência francesa. Com isso, a Suprema Corte parece por um fim às questões até então debatidas acerca do controle – se ‘minimalista’ ou ‘maximalista’ – exercido pelos tribunais franceses às sentenças arbitrais que possam violar a ordem pública internacional.

[1] Júlia Thedy: Associada, Herbert Smith Freehills Paris LLP.

[2] Lara Yokota: Estagiária, Herbert Smith Freehills Paris LLP.

[3] Suprema Corte, 23 de março de 2022, No. 17-17.981.

[4] Corte de apelação de Paris, 21 de fevereiro de 2017, No. 15/01650.

[5] Suprema Corte, 4 de junho de 2008, No. 06-15.320.

[6] Corte de apelação de Paris, 18 de Novembro de 2004, No. 02/19606.

[7] Na França, a jurisprudência considera que a noção de ordem pública internacional, nos termos do artigo 1.520, 5º, do Código de Processo Civil, inclui o conjunto de normas e valores da ordem jurídica francesa cuja violação não pode ser tolerada, mesmo em matérias internacionais.

[8] Ver, por exemplo Corte de apelação de Paris, 18 de novembro de 2004, No. 2002/19606. A formulação ‘flagrante, efetiva e concreta’ foi aprovada pela Suprema Corte francesa na decisão Cytec (Suprema Corte, 4 de junho de 2008).

[9] SERAGLINI, Christophe, Le contrôle de la sentence au regard de l’ordre public international par le juge étatique : mythes et réalités, Gazette du Palais, No. 80, 2009; DELANOY, Louis-Christophe, Le contrôle de l’ordre public au fond par le juge de l’annulation : trois constats, trois propositions, Revue de l’arbitrage, 2007.

[10] SERAGLINI, Christophe, Le contrôle par le juge de l’absence de contrariété de la sentence à l’ordre public international : le passé, le présent, le futur, Revue de l’arbitrage, 2020.

[11] Corte de apelação de Paris, 17 de janeiro de 2012, No. 10/21349; Corte de apelação de Paris, 26 de fevereiro de 2013, No. 11/1791; Corte de apelação de Paris, 4 de março de 2014, No. 12/17681; Corte de apelação de Paris, 25 de novembro de 2014, No. 13/11333.

[12] Corte de apelação de Paris, 16 de dezembro de 2014, No. 13/17643.

[13] Corte de apelação de Paris, 24 de fevereiro de 2015, No. 13/23404.

[14] Corte de apelação de Paris, 27 de setembro de 2016, No. 15/12614.

[15] Ver, por exemplo, JOURDAN- MARQUES, Jérémy, Chronique d’arbitrage : la Cour de cassation crève l’abcès sur l’ordre public international, Dalloz Actualité, 2022.

[16] Valeri Belokon c. República Quirguiz, Sentença, 24 de outubro de 2014, Corte Permanente de Arbitragem, Caso No. AA518. Disponível em: https://jusmundi.com/fr/document/decision/en-valeri-belokon-v-kyrgyz-republic-award-friday-24th-october-2014#decision_184.

[17] TOMASI, Thierry; SALDANHA, Luiza, Note: République du Kirghistan c. Valeriy Belokon, Court of Appeal of Paris, Case No. RG 15/01650, 21 February 2017, Revista Brasileira de Arbitragem, 2018.

[18] Em um curto período de tempo a contar da aquisição do Manas Bank pelo Sr. Belokon, o valor total das transações financeiras do banco superava o produto interno bruto do Quirguistão. Em 2008, as transações do Manas Bank atingiram o valor total de 5,2 bilhões de dólares, enquanto o produto interno bruto do Quirguistão totalizava 5,14 bilhões.

[19] O artigo 1.520-5 do Código de Processo Civil prevê que são nulas as sentenças arbitrais nos casos em que o seu reconhecimento ou execução sejam contrários à ordem pública.